quinta-feira, 12 de março de 2015

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20/12/2013 11h59 - ATUALIZADA EM: 11/07/2014 11h59 - POR MARCELO CABRAL

UMA ESCOLA FEITA SÓ DE RECREIO

CUMPRIR MISSÕES, SUPERAR DESAFIOS, GANHAR PONTOS, VENCER CHEFÕES E PASSAR DE FASE. VIDEOGAME? NÃO, ESCOLA. O COLÉGIO QUEST TO LEARN TRANSFORMOU TODO O CURRÍCULO EM JOGOS – E VEM TENDO OS MELHORES RESULTADOS DO SISTEMA EDUCACIONAL DE NOVA YORK

Uma aula de história, geografia e diplomacia na Quest to Learn: o nível de engajamento é bem maior que nas escolas tradicionais (Foto: Divulgação)

Em vez de carteiras e um professor na frente da classe ensinando conversão entre sistemas métricos, um monte de amigos disputam em um tabuleiro partidas de Metric Mystery, transformando polegadas em metros. Em vez de livros de história sobre a guerra civil americana, uma brincadeira transforma professores em soldados, donos de terra, políticos, comerciantes e escravos, falando sobre seus motivos para lutar entre si. Em vez de física, alunos constroem um robô com peças de Lego, a partir de um desafio proposto pelos professores. É assim que se ensina todo o conteúdo escolar para os 400 alunos da Quest to Learn, um colégio público de Nova York. É, nas palavras dos responsáveis pelo projeto, “a primeira escola do mundo a ter 100% de seu currículo baseado em jogos”.
O uso de jogos em empresas ou em campanhas publicitárias, em que funcionários ou clientes marcam pontos e ganham recompensas, não é propriamente uma novidade. O fenômeno já tem até nome: gameficação. No Brasil, empresas como Nike, Bradesco, IBM, Volkswagen e Itaú há anos aplicam jogos em treinamento de equipes e fidelização de consumidores. “Os jogos não são apenas divertidos; eles aumentam o engajamento e o aprendizado em tarefas que seriam maçantes no modelo tradicional”, diz Francisco Tupy, game designer e pesquisador da USP. Segundo a consultoria Gartner, 70% das 2 mil maiores empresas do mundo possuem projetos na área. Só nos Estados Unidos, estima-se que a gameficação movimente mais de US$ 2 bilhões por ano.

“Somos uma reação ao declínio dos EUA na preparação dos jovens”, diz Brian Waniewski, diretor do Institute of Play 

A verdadeira revolução da Quest to Learn (Q2L) é levar esses conceitos de forma integral para as salas de aula. “O sistema educacional deixa a desejar em engajamento e motivação, exatamente os pontos em que os jogos mais atuam”, diz Tennyson Pinheiro, sócio da consultoria Live/Work, especializada em design para negócios. “A gameficação nas escolas junta a fome com a vontade de comer.” Para Katie Salen, diretora da Q2L, o sistema escolar tradicional, baseado na memorização, molda crianças para empregos tradicionais. Com os games, o objetivo é prepará-las para trabalho em equipe, soluções criativas, gerenciamento do tempo e estímulo ao pensamento independente.
A Q2L é uma das respostas à crise no modelo escolar tradicional americano. “Somos uma reação ao momento de declínio do país na preparação de seus jovens”, diz Brian Waniewski, diretor-geral do Institute of Play, a organização que elaborou o currículo da Q2L. Hoje, os EUA ocupam a 17ª posição global na formação de engenheiros e cientistas. Segundo o Institute of Play, 32% dos diplomas obtidos por estudantes americanos são nessas áreas; no Japão e na China, são 66% e 59%, respectivamente. (Se os EUA estão em crise, imagine o Brasil: nossa taxa de engenheiros e cientistas é de 15%.)
O currículo não se resume a jogos eletrônicos. Há jogos de cartas e de tabuleiro, brincadeiras criadas pelos próprios alunos e representações teatrais. Também a educação física é estruturada como uma série de competições (Foto: Divulgação)
A Q2L surgiu, em 2007, a partir de uma parceria entre o Institute of Play, ONG formada por designers profissionais de videogames, e a New Visions for Public Schools, instituição que promove modelos inovadores de educação na rede pública de Nova York. “A New Visions trouxe a ideia da gameficação”, diz Waniewski. “Nós transformamos essas ideias em currículo e treinamos os professores.” A verba (não revelada) veio de uma fundação beneficente, mas as contas da escola, como salário dos professores, luz e manutenção de equipamentos, são bancadas pelo estado. O custo por aluno é um terço maior, chegando a US$ 24 mil por ano. Em contrapartida, nos testes obrigatórios do estado, os alunos da Q2L, na região sudeste de Manhattan, tiveram marcas acima da média – e crescentes – nos últimos três anos. A escola é a atual bicampeã da Olimpíada de Matemática do estado. Ainda não existem bolsas ou critérios de renda para o ingresso na Q2L, que atende crianças de 8 a 12 anos. Mais duas turmas devem ser criadas até 2014, elevando a idade máxima para 14.
Em vez de disciplinas separadas como matemática, ciências e gramática, as aulas são divididas em cinco grandes conjuntos (leia o quadro acima). Na matéria Codeworlds, por exemplo, o foco maior são números, porém integrados a letras, palavras e artes, para produzir uma percepção mais aberta do raciocínio matemático. Wellness é educação física, mas misturada a conteúdos de saúde, nutrição, psicologia e integração social. É como se a escola fosse um grande videogame, com cinco jogos diferentes.

O custo por aluno na Q2L é um terço maior que o normal. Mas a escola é bicampeã da Olimpíada de Matemática do estado de Nova York  
As próprias aulas têm estrutura igual à de um jogo eletrônico. É preciso superar desafios, cumprir missões e enfrentar um chefão para passar de fase. Durante dez semanas por semestre, os alunos têm de atingir objetivos em jogos criados pelos professores. Os alunos devem superar vários Desafios, que em seu conjunto dão aos estudantes as ferramentas necessárias para cumprir cada Missão. Uma possível Missão de História, por exemplo, é acabar com a guerra entre Atenas e Esparta – sendo que cada lado não pode abrir mão de seus objetivos centrais. Para chegar à paz, será preciso resolver as diferenças em uma série de aspectos comerciais, pessoais e diplomáticos, cada um deles sendo um Desafio diferente. O conteúdo histórico também pode ser repassado numa partida de um tradicional jogo de tabuleiro chamado Settlers of Catan (colonizadores de Catan) ou pela criação de uma revista em quadrinhos cujo tema seja o poema épico Gilgamesh.
As Missões e os Desafios podem ir da criação de um cardápio orgânico para a cantina da escola – com dados sobre nutrição, preparo de alimentos, logística e finanças – até a construção de pequenas estações de rádio. Os estudantes mais avançados têm como uma de suas Missões criar Desafios para as turmas mais novas.
TUDO JUNTO E MISTURADO (Foto: Reprodução)
Após cumprir as Missões, os estudantes passam duas semanas na Fase do Chefe: o desafio final, que exigirá todo o conhecimento obtido ao longo do período anterior. Essa fase é dura: os alunos precisam pesquisar, construir teorias, testar hipóteses e passar pelo crivo de uma banca de professores. Caso sejam aprovados, “sobem de nível”, ou seja, passam de ano. Não há notas, e sim uma avaliação que leva em conta como eles usaram o conteúdo do semestre. Os próprios estudantes, aliás, podem mudar o modo como são avaliados, se conseguirem construir um processo melhor. “Queremos que os alunos sejam os designers de seu próprio aprendizado”, diz Waniewski. Até hoje, nenhum aluno repetiu de ano.
A Q2L prioriza os jogos – mas não necessariamente os eletrônicos. A tecnologia está lá, nas impressoras 3D, laptops e iPads, nos videogames como The Sims e Spore e no uso do Google Earth, além da rede social dedicada, do estúdio de realidade virtual e do sistema digital de design. Mas o conceito mais amplo de jogos inclui desde brincadeiras físicas, como pega-pega e esconde-esconde, a jogos de carta, tabuleiro e RPG (uma espécie de representação teatral). “Não somos uma escola dirigida pela tecnologia, mas pelo engajamento”, afirma Waniewski. Para o pesquisador Tupy, da USP, “os recursos eletrônicos não são o fim e sim um meio para desenvolver temas como gestão de projeto, inovação, empreendedorismo”.
É claro que o ensino por jogos não é uma unanimidade em educação. É apenas uma das linhas que procuram desenvolver pessoas críticas, num mundo lotado de informações. “O uso de jogos não pode ser uma camisa de força”, diz Tupy. “Ele tem de servir para a emancipação, não para o condicionamento.” De acordo com Carlos Grieco, fundador da EvoBooks, empresa que vende produtos baseados em videogames voltados à educação, as crianças também precisam passar por uma adaptação na hora de deixar a escola, para que possam se integrar a ambientes sem jogos.
O modelo, pelo menos por enquanto, não serve para larga escala. “É complicado replicar esse tipo de solução”, diz Grieco. “Nossa rede pública tem carências mais urgentes, de itens básicos.” Mas, mesmo aqui, já se usam os jogos em algumas escolas, em algumas disciplinas. Segundo os diretores da Q2L, esta é a ideia: incorporar os jogos aos poucos. O Institute of Play tem recebido encomendas dos EUA e de fora para gameficar partes do currículo de outras escolas. O jogo está só na primeira fase.   
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MANUAL DE INSTRUÇÕES (Foto: Reprodução)

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