quinta-feira, 12 de novembro de 2015

O verdadeiro legado de Simone de Beauvoir

O verdadeiro legado de Simone de Beauvoir
Esqueça ‘memes’ de Facebook partilhados após a prova do Exame Nacional do Ensino Médio. A contribuição da intelectual francesa e da sua geração para o mundo está muito além da espessura do debate político predominante nas redes

Por Murilo Cleto
Corria o ano de 1748 no reino de Nápoles, no sul da península itálica. Começavam as escavações do que seria uma das maiores descobertas arqueológicas de todos os tempos. Em 79 d.C., o vulcão Vesúvio entrou em erupção e arrasou cidades do antigo Império Romano, que permaneceram soterradas até o início da exploração da área. 17 séculos depois, veio a confirmação: as ruínas eram Pompeia, com toda sua cultura material preservada graças à tragédia.
De tudo aquilo que foi encontrado, o que era considerado precioso seguiu para a coleção particular do rei Carlo III. Aqueles objetos que eram entendidos como pouco relevantes foram destruídos, inclusive para que não caíssem em “mãos erradas” e desenhassem outra história que não a fundada sob os valores estéticos da nobreza napolitana.
É o caso da “coleção erótica” ali encontrada. O que não se perdeu com os descartes foi depositado no Museo Ercolanese dei Portici e, mais tarde, no Palazzo degli Studi di Napoli sob o nome de Gabinetto degli oggetti osceni, rebatizado de Gabinetto degli oggetti riservati em 1823. Décadas mais tarde, o gabinete passou a se chamar Raccolta pornográfica. Seja como for, o acesso ao seu conteúdo permaneceu restrito até o ano de 2000, quando a coleção finalmente foi aberta para visitação pública. Não sem calorosos protestos do Vaticano, que, por um porta-voz, disse que “não interessa o que esses objetos significavam para os romanos. Hoje eles são obscenos, e ponto final”.
Apesar de danoso, o constrangimento provocado pela coleção erótica de Pompeia é bastante compreensível. Até pelo menos os anos 1960, prevaleceu hegemônica a ideia de que a sexualidade só poderia ser encarada a partir de uma tradição ocidental calcada em dois universos de interpretação: o judaico-cristão e o cientificista. De um lado, a percepção de que o sexo é algo moralmente condenável, assim como toda forma de prazer, e só admissível para fins de reprodução e, de outro, a tendência em transformá-lo num objeto passível de análise seriável. Vem do século XIX, aliás, a origem da utilização do termo “homossexualidade” para caracterizar práticas de amor e prazer entre pessoas do mesmo sexo.
A história do corpo e das mentalidades
Em pleno ano de 2015, uma questão no Exame Nacional do Ensino Médio provocou escândalo. Trata-se de um trecho de O Segundo Sexo, livro originalmente publicado por Simone de Beauvoir em 1949. Nele, a autora francesa sustenta que as diferenças sexuais não são biologicamente determinadas, mas socialmente construídas.
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino.
Foi somente a partir dos anos 1960 que essa forma de encarar o sexo chegou à historiografia, até então ocupada demais com estruturas econômicas e pouco atenta a comportamentos e ideias, com medo, talvez, de recuperar o laço histórico com a filosofia, desfeito somente no século XIX. Ironicamente, foi um filósofo, Michel Foucault, quem se apropriou de boa parte desta bagagem para mais tarde escrever, em três tomos, História da Sexualidade.
Contemporânea de Foucault, a 3ª geração de Annales, representada por Le Goff, Nora, Vovelle, Veyne, Ariès, Ladurie e tantos outros, ficou conhecida como História das Mentalidades, uma corrente de ruptura com o estruturalismo econômico voltada às práticas e os saberes. A prerrogativa aberta enfim permitiu uma história do medo, da morte, da tristeza e, claro, da sexualidade. Até então vigorou uma perspectiva ancorada na tradição dos arqueólogos mediterrâneos que acreditam que o ser humano é sempre o mesmo e, portanto, a sua sexualidade é um comportamento inato. Foi o que ajudou a incentivar interpretações anacrônicas sobre a sexualidade noutros tempos, fortemente calcadas nos juízos de valor trazidos pela tradição judaico-cristã e também científica de um contexto marcado pelo controle vitoriano sobre o corpo.
Em 1978, o historiador Jean Delumeau dedicou parte do capítulo “Os agentes de Satã” em História do medo no Ocidente para tratar especificamente sobre a figura da mulher e de que maneira ela foi concebida pelo imaginário cristão. Além de propriedade (“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo” [10º Mandamento: Êxodo, cap. 20, vers. 17]), ao sexo feminino também foi delegada ampla responsabilidade sobre o “pecado original”, como fundamentado pelo início do Antigo Testamento.
Para a mulher como personificação de Eva, o historiador e teólogo do Império Romano Tertuliano disse: “Tu deverias usar sempre o luto […] a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdição ao gênero humano. Mulher, tu és a porta do diabo. Foste tu que tocaste a árvore de Satã e que, em primeiro lugar, violaste a lei divina”.
A partir da Baixa Idade Média, esta percepção se acentuou. Para Odon, abade de Cluny do século X, “a beleza física não vai além da pele. Se os homens vissem o que está sob a pele, a visão das mulheres lhes viraria o estômago. Quando nem sequer podemos tocar com a ponta do dedo um cuspe ou esterco, como podemos desejar abraçar esse saco de excremento?” Em 1185, André Le Chapelain escreveu que “a mulher é um verdadeiro diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impaciência, uma ocasião de disputas das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranquilidade”.
“É preciso varrer a casa? – Sim. – Sim. Faze-a varrê-la. É preciso lavar de novo as tigelas?
Faze-a lavá-las. É preciso peneirar? Faze-a peneirar. É preciso lavar a roupa? Faze-a lavá-la em casa. – Mas há a criada! – Que haja a criada. Deixa fazer a ela (a esposa), não por necessidade de que seja ela que o faça, mas para dar-lhe exercício. Faze-a vigiar as crianças, lavar os cueiros e tudo. Se tu não a habituas a fazer tudo, ela se tornará um bom pedacinho de carne. Não lhe deixes comodidades, eu te digo. Enquanto a mantiveres atenta, ela não permanecerá à janela, e não lhe passará pela cabeça ora uma coisa, ora outra”, foi o que disse no século XV Bernardino de Siena, tornado santo depois pela Igreja. Já na Idade Moderna, o humanista Thomas Murner descreveu a mulher como “diabo doméstico”.
Neste contexto, a grande contribuição de Delumeau à historiografia foi demonstrar como o medo, natural e, portanto, biológico, poderia adquirir diferentes formas de acordo com o contexto de sua produção e, mais do que isso, produzir variadas forma de violência, física e simbólica.
Instrumentalização teórica e ação política
A partir do arcabouço destas renovadas ciências sociais nos anos 1960, amplamente dispostas ao diálogo interdisciplinar sobretudo entre história, antropologia e psicologia, a percepção sobre o mundo mudou radicalmente. Isso em grande parte porque cláusulas aparentemente pétreas do comportamento humano finalmente passaram a ser revistas por um processo importante de desnaturalização.
A rigor, esta guinada significou a abertura de um precedente: ora, se as coisas, dentre elas o próprio corpo, não são naturais, isso significa que elas foram elaboradas; se foram elaboradas, é porque podem também ser transformadas. Não que movimentos sociais tenham surgido fundamentalmente a partir de escolas teóricas, mas foram elas que forneceram importantes subsídios para uma onda de contestações que tomou conta do Ocidente através de organizações políticas pelos direitos dos negros, dos homossexuais e das mulheres, por exemplo.
O que produziu Beauvoir neste contexto é apenas a percepção de que o que se entende naturalmente por mulher é, na verdade, uma colcha de retalhos elaborada por milênios de civilização. Os protestos feministas influenciados pelo seu pensamento, como questionou o Enem, são um fato.
Mas não demorou nada para que Jair Bolsonaro, Marco Feliciano e até mesmo importantes articulistas passassem a questionar a legitimidade da prova. Logo após a aplicação do sábado, Bolsonaro exibiu a questão junto a um anexo que dizia “Mais ou tão grave quanto a corrupção é a doutrinação imposta pelo PT junto a (sic) nossa juventude. ‘O João não nasceu homem e a Maria não nasceu mulher’. O sonho petista em querer nos transformar em idiotas materializa-se em várias questões do ENEM (Exame Nacional do Ensino Marxista)”. Pelo Facebook, milhares de compartilhamentos reproduziram uma imagem de Beauvoir que classificavam-na como “nazista” e “pedófila”.
Na Folha de S. Paulo, Hélio Schwartsman mostrou-se inconformado com o viés “ideológico” do exame representado pelo alto índice de autores por ele considerados de esquerda, 31%. Segundo Schwartsman, que jogou Simone de Beauvoir, Karl Mannheim, Slavoj Zizek, Agostinho Neto e Paulo Freire no mesmo bolo, as questões do Enem foram “capazes de disparar conexões neurais esquerdistas nos candidatos”. E os demais 69%? Em coluna na Boitempo, o psicanalista Christian Dunker foi certeiro: joga-se para a “ideologia” tudo aquilo que em tese não respeita princípios objetivos de uma ciência neutra justamente para incluir no campo da imparcialidade aquilo que a direita convencionou correto.
Verdade seja dita, a repercussão do Enem reflete a espessura do debate político predominante nas redes sociais. De um lado, boicotes e ilações delirantes sobre o que significa discutir violência doméstica, Zizek ou Beauvoir numa prova para estudantes de ensino médio, e, de outro, ofensas revanchistas com a utilização de termos como “piroco”, “opressor” e “machisto”. De Beauvoir mesmo, pouco ou quase nada.
Em nota, o professor Moysés Pinto Neto recuperou Kant para, ao mesmo tempo em que reforçar a importância da relação entre teoria e prática, rechaçar a associação tosca que se tem feito entre o estudo de autores e o que se convencionou chamar de “doutrinação”. De acordo com a lógica neomacartista imperante, autores mundialmente reconhecidos não podem ser sequer mencionados em exames escolares. Quando o óbvio já não se apresenta com tanta clareza, foi preciso dizer: “Estudar Marx, Milton Santos e Simone de Beauvoir é uma exigência básica de qualquer currículo em ciências humanas, concorde-se ou não com eles. Aliás, para discordar é preciso ter estudado e verificar quais são os argumentos e conhecer um autor não significar aderir às suas ideias. Antigamente chamava-se isso de ‘honestidade intelectual'”, concluiu.
Há, evidentemente, explicações razoáveis para este desespero. Quando Beauvoir lançou luz sobre a historicidade da mulher, evidenciou também o caráter social das suas atribuições, até então tidas como naturais e irreversíveis. E, da mesma forma, tudo o que permanecia dentro de um universo confortável de opressões cotidianas, como pouco a pouco as ciências sociais passaram a revelar, e que sobreviviam a partir de argumentos imobilizantes como o recorrente “sempre foi assim”. O que sua geração desnudou foram essas manobras históricas de naturalização e, portanto, a possibilidade real de mudança.
Graças a Beauvoir é possível olhar hoje para a coleção erótica de Pompeia para, a partir dela, descobrir a relação dos romanos com a sexualidade, para eles um continuum – e não uma ruptura – com religião e identidade, sem sentimento de culpa ou obsessão cientificista de caterigorização de comportamentos. Para os romanos, pendurar objetos fálicos nas casas era sinônimo da busca por sorte, por causa da associação recorrente e cotidiana entre pênis e fertilidade. Sem as “teorias de gênero”, essa percepção seria mais do que improvável na história, fadada talvez ao olhar pudico e, numa palavra, infértil.
O que se quer, no fim das contas, tanto com Simone de Beauvoir quanto com o que ela representa, é devolvê-la ao gabinete italiano trancafiado onde se esconderam os traços do que a civilização rejeita como parte de sua história. O que está em jogo aqui, e aparentemente mais do que nunca, é a chave que lhe dá acesso.
Foto de capa: Alberto Korda

http://www.revistaforum.com.br/semanal/o-verdadeiro-legado-de-simone-de-beauvoir/

Nenhum comentário:

Postar um comentário