segunda-feira, 18 de maio de 2015

CAPA

Destino existe?

Estamos mesmo no comando da nossa vida? A ciência tem mais de uma resposta: por um lado, o conceito de destino é imaginação pura. Por outro, a própria realidade é uma ilusão. E o futuro já está escrito

por José Francisco Botelho e Alexandre Versignassi

Só podia ser destino. Eu, um dos autores desta reportagem, tinha 17 anos e estava apaixonado. Platônico total: tinha conhecido a menina 8 meses antes, numa viagem. A gente ficou junto e no dia seguinte foi cada um para o seu canto. A menina, para a cidade dela, eu, para a minha. Não teve troca de telefone nem nada. Fim. Mas a moça não saía da minha cabeça. Seis, 7, 8 meses e a coisa só aumentava. Ir atrás dela? Esquece. A mulher morava numa metrópole de mais de 1 milhão de habitantes - e nem o sobrenome dela eu tinha. O certo mesmo era pôr a cabeça no lugar e partir pra outra. Então pensei bem e tomei a decisão mais sensata: ir atrás dela. Desci na rodoviária do lugar, fiquei umas horas andando por lá sem eira nem beira... Mas aí, minha nossa. Ela, a própria, me passa andando bem ali, do outro lado da calçada. Atravesso a rua com o batimento mais acelerado que coração de big brother no paredão. Tinha dado certo. Só podia ser destino. 

Encontrar um amor, ganhar na loteria, escapar de uma batida de carro, bater o carro... Vários capítulos da vida acontecem de um jeito tão inesperado que não dá para não pensar: é tudo acaso mesmo? Ou existe algo misterioso regendo a existência? Você vai ver nas 4 reportagens a seguir que as duas perguntas têm a mesma resposta: sim. Nada está escrito. Mas tudo está escrito. 

O destino está nas estrelas 


A ideia de um futuro predeterminado move filosofias e religiões. E serve de combustível para um dos conceitos mais antigos da humanidade: o de que os astros regem nossa vida.

A crença de que nosso futuro já está determinado é parte do que somos. O problema é que nosso cérebro tem um defeito congênito: ele é programado para encontrar sentido em qualquer coisa, inclusive para a existência. 

Quer ver como isso funciona, Rafael? Bom, quem se chama Rafael acabou de ver. Poderíamos ter escrito qualquer nome aqui. Mas se for o seu, Juliana, isso vai parecer especial. Claro que ver o seu nome impresso do nada já é algo especial. Mas sua mente tende a achar mais especial. Até as mentes mais céticas imaginam naturalmente que uma força superior determinou isso. O destino, talvez. Mas a realidade é que escolhemos Rafael e Juliana porque são nomes comuns. A chance de acertarmos o nome de vários leitores não era desprezível.

Um exemplo mais claro: imagine que o próximo concurso da Mega-Sena dê 01, 02, 03, 04, 05 e 06. Seria destaque do Jornal Nacional, conversa de almoço de domingo... Mas a chance de dar uma se-quência dessas é estatisticamente a mesma de sair uma que o cérebro entende como mais comum, tipo 06, 13, 17, 27, 45 e 54. A diferença é que a nossa mente adora padrões. E a ideia de que todos os acontecimentos da nossa vida orquestram-se rumo a um destino predefinido é a quintessência dessa coisa de ver padrão em tudo. E basta uma coincidência qualquer, como seu nome impresso aqui ou a menina encontrada no meio de uma cidade grande, para engatilhar essa impressão. 

Por isso mesmo todas as culturas desenvolveram métodos de prever o futuro. Ele podia estar desenhado em tripas de carneiro, nuvens, restos de placenta...Mas nenhuma forma de tentar ver o futuro chegou com tanta força ao presente quanto a astrologia.

Ligar o movimento dos astros aos trancos e barrancos da vida aqui embaixo é algo que começou na Pré-História. Esse hábito deriva de uma observação simples: a de que a posição do Sol não varia apenas de acordo com as horas do dia mas também com a passagem do ano. Observando os pontos em que o Sol nascia no horizonte, nossos ancestrais notaram que ele ia mudando de direção com o passar dos meses. E logo identificaram um grupo de constelações posicionadas perto dessa rota aparente do Sol. Ao contrário das outras estrelas, que se movem visivelmente ao longo do ano, aquele anel de constelações - que os gregos batizaram de "círculo de animais", ou "zodíaco" - parecia fixo. 

Também notaram que a posição do Sol em relação ao zodíaco tinha ligação com o clima e as estações. O nascimento do Sol próximo à constelação de Áries marcava o equinócio de primavera - o momento em que o dia e a noite têm duração idêntica. Essa data sempre teve importância simbólica: marcava a entrada da primavera no hemisfério norte e era centro de celebrações religiosas relacionadas à fertilidade. A conclusão era que aquelas constelações influenciavam a duração dos dias e o clima - parecia simplesmente lógico, então, que também tivessem poder sobre a vida humana. Daí vieram os primeiros horóscopos, que já eram produzidos na Mesopotâmia de 1 000 anos antes de Cristo de maneira idêntica à de hoje. Se uma criança vinha ao mundo no período em que o Sol nasce na parte do céu ocupada por Libra, a vida dela era "regida" pela constelação - na prática, o conjunto de estrelas era entendido como uma divindade. O costume passou para os gregos, romanos, e daí para o mundo. 

A astrologia já teve prestígio de ciência - até o século 17 quase todo astrônomo também era astrólogo, incluindo aí gênios científicos como Johanes Kepler. Isso acabou. Mas o poder da astrologia não. Estima-se que 70% das pessoas no Ocidente leiam seu horóscopo.


Várias religiões e um destino 


O conceito de destino sofisticou-se com o tempo. Ele se tornou fundamental para a filosofia e a religião. E continua até hoje. Tanto que uma das doutrinas mais antigas sobre o assunto ainda está em voga: a do carma, elaborada há pelo menos 3 mil anos na Índia. 

De acordo com ela, nada acontece por acaso: todos os fatos na vida de um indivíduo são consequência de suas ações em existências passadas. "Nosso caráter é resultante total de nosso passado, e o nosso futuro será determinado por nosso presente. Quando dizemos que algo ocorreu por acaso ou por acidente, isso se deve ao nosso conhecimento limitado dos fatos", diz Swami Nirmalaiatmananda, líder do movimento religioso vedanta no Brasil. Embora o plano geral de nossa vida já esteja traçado antes do nascimento, a teoria do carma deixa espaço à liberdade humana: cada pessoa pode tentar agir com virtude e ir "descontando" a carga das vidas passadas. Quem acertar as contas cármicas será recompensado na próxima reencarnação; mas quem ficar no vermelho terá de pagar com acidentes e desgraças. 

Alguns pensadores da Grécia antiga tinham uma visão parecida, mas menos liberal: defendiam que não dá para escapar do que estiver reservado para você. Eram os adeptos do estoicismo, uma das correntes filosóficas mais influentes da Antiguidade. De acordo com os estoicos, o futuro é tão inalterável quanto o passado. Zero de livre-arbítrio. 

Na mesma época em que o estoicismo ganhava força, por volta do século 4 a.C., surgiu uma corrente com ideias opostas: o epicurismo. Se os estoicos achavam que o Universo era uma ordem perfeita, Epicuro afirmava que a essência de tudo o que existe é o caos. O nosso mundo e a nossa vida seriam fruto do acaso. E pronto. Essa ideia seria retomada no século 20 por filósofos existencialistas, como Jean-Paul Sartre. Para ele, acreditar em um futuro com cartas marcadas equivalia a escapar da responsabilidade de tomar decisões. Os existencialistas afirmaram, com isso, a total liberdade humana - mas também legaram um medo: o de que podemos viver em um mundo que não faça sentido. Afinal, isso vai contra aquele instinto básico do cérebro de tentar ver sentido, ordem, em tudo.

Na história do cristianismo - e das outras religiões monoteístas -, o problema do destino assumiu vestimentas teológicas. A história da traição de Judas a Jesus ilustra bem isso. Os Evangelhos deixam bem claro que a crucificação de Cristo fazia parte dos planos divinos - mas a cruz só foi possível graças ao maligno feito de Judas. Nesse caso, Judas estaria predestinado a ser mau? A resposta mais radical foi dada pelo protestante francês João Calvino no século 16. Na obra Instituição da Religião Cristã, ele formulou a teoria da predestinação. Segundo ela, Deus escolheu de antemão um (pequeno) número de pessoas para a salvação eterna - e condenou previamente a maioria das pessoas ao inferno. Assim como Judas, a maior parte da humanidade estaria simplesmente destinada ao mal e à punição. "Se a negação do destino traz angústia pela responsabilidade das escolhas humanas, a doutrina da predestinação angustia porque, no fundo, não temos como saber qual a escolha divina", explica o filósofo Franklin Leopoldo Silva, da Faculdade de São Bento, em São Paulo. 

Calvino acreditava que a misericórdia divina poderia eventualmente alterar os destinos - mas, no século 20, fundamentalistas protestantes dos EUA reciclaram a doutrina calvinista para criar a chamada "teologia da prosperidade". Segundo eles, a riqueza e a boa sorte nos negócios são sinais de que determinada pessoa foi "escolhida para o paraíso", enquanto a pobreza e o azar são indícios de que alguém já está previamente condenado ao inferno. Um raio na cabeça seria evidência indiscutível de que, antes mesmo de seu nascimento, Deus já havia decidido que você não presta.Mas esse conceito radical de destino está longe de ser a regra mesmo entre os protestantes. No catolicismo, muito menos. O Vaticano sempre frisou o livre-arbítrio como uma peça necessária à responsabilidade moral. Afinal, se as pessoas fossem boas ou más por decreto divino, qual o sentido de recompensá-las ou puni-las? 

A teologia muçulmana também procurou um meio-termo entre o livre-arbítrio e a potência divina: o homem é livre para agir, mas Deus já sabe de antemão o que cada um de nós vai fazer ou deixar de fazer. "Deus tem o pré-conhecimento de todas as escolhas que tomaremos, mas não nos obriga a tomá-las; sabe tudo o que vai acontecer, mas não provoca os acontecimentos", explica Sami Arrmed Isbelle, diretor da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro. 

O surreal é que a ideia de um futuro predeterminado e, ao mesmo tempo, inescrutável, tem uma colaboradora inusitada: a ciência. Ela mesma indica que, sim, seu futuro está escrito. Como disse Einstein em pessoa: "A distinção entre passado, presente e futuro é uma ilusão". E a a realidade está na próxima página. 

Para saber mais
A History of Western Astrology
Nicholas Campion, Continuum, 2009.

O que a Teoria da Relatividade diz sobre destino?

A passagem do tempo é uma ilusão. O futuro existe agora mesmo. E é tão imutável quanto o passado. É o que mostra a Teoria da Relatividade. Isso significa que o destino pode existir? Significa.

por Alexandre Versignassi

Imagine tudo o que está acontecendo agora, neste segundo. Você acaba de piscar o olho. Uma moeda afunda na água da Fontana di Trevi, em Roma. Mick Jagger escova os dentes. O Sol se põe num vale de Marte. Alguma forma de vida de uma galáxia muito, muito distante, acorda para ir trabalhar. Só dá um desconto: pode ignorar que você não tem como saber se tudo isso está acontecendo mesmo. Só pense nessas imagens como um retrato do Universo inteiro neste momento.

Agora vou pedir que um leitor de uma galáxia muito, muito distante faça o mesmo exercício. Na ideia de agora que ele faz do Cosmos vai estar você piscando o olho, a moeda e tudo o mais? Vai. 

Mas aí o leitor da outra galáxia fica com sede e se levanta para tomar um copo de arsênico. Agora que ele está na cozinha eu peço que ele faça outro retrato mental do Universo. Neste momento muda tudo. Na nova imagem dele, feita só 10 segundos depois, a Terra estará no ano de 2100. Isso acontece porque a forma como os indivíduos percebem a passagem do tempo muda conforme eles se movimentam. Foi o que Einstein descobriu: quando a sua velocidade aumenta, você corre em direção ao futuro mais rápido do que quem está parado. Se você vai de bicicleta até a padaria, chega lá mais no futuro do que se tivesse ido a pé. Uma fração de quatrilhonésimo de segundo no futuro, mas chega. Se a bicicleta andasse a 1,07 bilhão de quilômetros por hora (quase à velocidade da luz), você sairia de casa em janeiro de 2011 e compraria seu pão no século 22. Sob as velocidades do dia a dia, o efeito temporal é minúsculo. Mas existe.

Só que a história muda quando entram distâncias muito grandes na jogada. A geometria da coisa é complexa demais para entrar neste texto. Mas, resumindo, é o seguinte: distâncias intergaláticas, de bilhões de anos-luz, amplificam o efeito da velocidade. Por isso que no exemplo do leitor de outra galáxia bastou uma caminhada até a cozinha a menos de 10 km/h para dar aquele salto de 100 anos.

Esse exemplo, criado pelo físico Brian Greene, da Universidade Columbia, entrou aqui para deixar claro um postulado da física: o de que todos os pontos de vista são válidos, mesmo o de um personagem hipotético, como o nosso. Se ele existisse, sua noção de agora, as coisas que o personagem imagina como reais no presente dele, poderiam incluir fatos que para nós ainda não foram resolvidos - como quem será o presidente da República em 2100. Naquilo que para ele é um passado remoto, estaria o dia e a causa exata da sua morte. E você não tem como mudar isso. Em outras palavras: seu destino está decidido. Por isso Einstein disse que a diferença entre passado, presente e futuro é ilusória. Na prática, tudo o que ainda vai acontecer já aconteceu. 

Para enxergar isso melhor, pense no Universo como ele realmente é: um grande rolo de filme. Cada frame ali é um instante no tempo. No primeiro, está o início de tudo, o Big Bang. No último, o fim do Universo (seja lá como for esse momento). No meio há um frame com uma fração de segundo do dia da fundação de Roma, outro com o primeiro ensaio dos Beatles, outro com o melhor dia da sua vida, outro com a formatura do seu neto... A Teoria da Relatividade mostra que todos os momentos da existência "acontecem" ao mesmo tempo. Mas, se o futuro já está determinado, não dá para saber o que tem lá na frente? Aí os físicos são unânimes: nem a pau. "Para fazer isso, precisaríamos de uma espécie de supercomputador. Mas nada pode computar mais rápido que a própria natureza", diz o holandês Gerard t´ Hooft, Nobel de física de 1999. Ou seja: para desvendar a natureza, as fatias do futuro, só com uma máquina maior que a própria natureza - uma máquina sobrenatural...

Mas, para alguns (poucos) cientistas, esse artefato existe, sim. É você. Nosso cérebro seria capaz de sentir o futuro. Um desses pesquisadores é o psicólogo americano Daryl Bem, da Universidade Cornell, uma das mais respeitadas dos EUA.

Daryl pesquisa a influência do futuro sobre o nosso inconsciente. Ele usa experimentos clássicos da psicologia, como este aqui: primeiro coloca um grupo de voluntários com telas de computador na frente. Então ele vai mostrando fotos e os voluntários têm que dizer se a imagem é "positiva" ou "negativa" (tem um botão para cada resposta). Básico: se aparecer uma foto feia, de vermes sobre carne podre, por exemplo, você tem que apertar "negativo". Se surgir a de um bebê ou outra coisa bonitinha, aperta "positivo". Mas tem um extra aí. Esse experimento serve para testar o efeito de mensagens subliminares. Antes de aparecer a foto da carne podre, por exemplo, os pesquisadores fazem uma palavra negativa (tipo "nojo") piscar na tela por uma fração de segundo. Não dá tempo de ler. Mas o "nojo" fica impresso no subconsciente dos voluntários. Aí, quando eles veem a foto da carne podre, apertam o botão de "negativo" mais rápido. É uma reação clara à mensagem subliminar. A diferença é que Daryl faz o mesmo experimento ao contrário: coloca a mensagem depois da foto. A influência dela deveria ser zero nesse caso, óbvio. Mas não: alguns dos voluntários passam a apertar o botão com mais rapidez, como se tivessem visto a palavra antes da imagem. A conclusão de Daryl é que eles conseguem ver o futuro. Só tem um problema: os resultados são pouco convincentes. A mensagem subliminar do futuro "faz efeito" em coisa de 52, 53% das vezes - e o acaso já garantiria 50%. 

Seja como for, a verdade é que a ciência ainda não criou uma forma de conciliar livre-arbítrio com Einstein. Mas ok: ela já descobriu coisas tão supreendentes quanto em outros campos que envolvem essa história de destino. Principalmente nos mais fascinantes: os que explicam por que a sua vida é assim, desse jeito. E a nossa reportagem sobre esse assunto é como o futuro: já está escrita! Logo ali. 

Para saber mais
O Tecido do Cosmos 
Brian Greene, Companhia das Letras, 2004.

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