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Cárcere de Roma, 20 de novembro de 1926
Minha queridíssima Iulca,
lembras umha das tuas últimas cartas? (era ao menos a última
carta que recebim e lim). Escrevias que nós os dous somos
ainda demasiado jovens para podermos aspirar a ver crescer
juntos os nossos filhos. É preciso que tu, agora, lembres isto
intensamente, que tu penses nisto intensamente cada vez que
pensas em mim e que me associes aos nossos filhos. Estou
certo de que serás umha mae forte e corajosa, como sempre o
foche. Terás de sê-lo ainda mais do que no passado, para que
as crianças cresçam bem e sejam completamente dignas de ti.
Pensei muito, muito nestes dias. Procurei imaginar como será
toda a vossa vida no futuro, porque vou ficar, com certeza,
sem notícias vossas durante muito tempo; e voltei pensar no
passado, tirando dele razons para ter umha força e umha fé
infinitas. Eu som e serei forte; quero-te e quero chegar a ver as
nossas criaturinhas.
Minha querida, nom quereria incomodar-te de nengumha
maneira; estou um pouco canso, porque durmo pouquíssimo
e por isso nom consigo escrever tudo o quanto gostaria
e como gostaria. Quero fazer que sintas bem forte todo o meu
amor e a minha confiança. Abraça toda a gente da tua casa;
abraço-te a ti e mae às crianças com a maior tenrura.
Antonio
•
46
(Carta 2)
Roma, 20 de novembro de 1926
Queridíssima mamae:
Tenho andado a pensar muito em ti nestes dias. Tenho pensado
nos novos desgostos que vou causar-te, à tua idade, e
depois de todos os sofrimentos que tés passado. É preciso que
sejas forte, apesar de todo, como eu som forte, e que me perdoes
com toda a tenrura do teu imenso amor e da tua bondade.
Saber-te forte e paciente no sofrimento será um motivo
para que eu também seja forte: pensa-o, e quando me escrevas
ao endereço que che mandarei, tranquiliza-me.
Eu estou tranquilo e sereno. Moralmente estava preparado
para tudo. Tentarei superar também fisicamente as dificuldades
que podam esperar-me e restar em equilíbrio. Conheces
o meu carácter e sabes que há sempre umha ponta de bom
humor no seu fundo: isso vai-me ajudar a viver.
Nom che tinha escrito ainda que me nasceu um outro filho:
chama-se Giuliano, e escrevem-me que é forte e cresce
bem. No entanto, nestas últimas semanas Delio tivo a escarlatina,
embora nom fosse grave; contudo, nom conheço neste
momento o seu estado de saúde: sei que superou a fase crítica
e que se está a repor. Nom deves preocupar-te muito polos
teus netinhos: sua mae é mui forte e com o seu trabalho educará-os
mui bem.
Queridíssima mae: nom tenho mais forças para continuar.
Escrevim outras cartas, pensei em muitas cousas e cansou-me
um pouco nom dormir. Tranquiliza toda a gente: di-lhes que
nom devem ter vergonha de mim e que devem ser superiores
à estreita e mesquinha moralidade do rural. Di para o Carlo
que ele, nomeadamente agora, tem o dever de pensar em
vós, de ser sério e trabalhador. Grazietta e Teresina devem ser
47
fortes e manter-se serenas, nomeadamente Teresina, se estiver
esperando mais um filho, como me escreveche. Também meu
pai deve ser forte. Queridíssimos todos, neste momento tenho
umha mágoa no coraçom, principalmente quando penso que
nom fum sempre afetuoso e bom convosco, como deveria ter
sido e como merecíades. Querede-me sempre, seja como for,
e lembrade-me.
Um beijo para todos. E para ti, querida mae, um abraço e
um feixe de beijos.
P.S. — Um abraço para Paolo1
, e que queira sempre bem e seja
sempre bom com a sua querida Teresina.
E um beijo para Edmea e Franco.
Nino
•
(Carta 3)
Ustica, 9 de dezembro de 1926
Queridíssima Tatiana,
cheguei a Ustica2
o 7 e o dia 8 recebim a tua carta do 3. Heiche
descrever noutras cartas todas as impressons da minha
viagem, na medida em que as lembranças e as diferentes emo-
çons se vaiam ordenando no cérebro e me tenha recuperado
1 Paolo Paulesu, marido de Teresina. Edmea e Franco, nomeados mais adiante,
som sobrinhos de G.; a primeira, filha do irmao Gennaro, o segundo, filho
da irmá Teresina. Grazietta e Carlo som outros dous irmaos de G. Grazietta é a
segunda filha por ordem de nascimento, Carlo o último.
2 Lugar de desterro para presos comuns e políticos. Gramsci deixara o cárcere
de Regina Coeli no dia 25 de novembro de 1926.
48
do cansaço e das insónias. Para além das circunstáncias especiais
em que a viagem se tem desenvolvido (como poderás
compreender, nom é mui confortável, mesmo para um
homem forte, passar horas e horas num comboio-correio e
num barco com as algemas nos pulsos e sujeito por umha cadeia
que te amarra aos pulsos dos companheiros de viagem);
a viagem foi interessantíssima e cheia de diferentes detalhes,
dos shakespearianos até os cómicos: nom sei se serei capaz,
por exemplo, de reconstruir umha cena nocturna na passagem
por Nápoles, num local imenso, mui rico em exemplares
zoológicos fantasmagóricos; acho que só pode igualá-la a cena
do coveiro no Hamlet. O trecho mais difícil da viagem foi a
travessia de Palermo até Ustica; tentámos quatro vezes a viagem
e três vezes tivemos de voltar ao porto de Palermo, pois
o barco nom resistia o temporal. Contudo, sabes que engordei
durante este mês? Eu próprio estou surpreendido de me sentir
tam bem e de ter tanta fome: acho que em quinze dias, depois
de ter repousado e dormido suficientemente, estarei completamente
livre de qualquer rasto da hemicránia e iniciarei um
período totalmente novo da minha existência molecular.
A minha impressom de Ustica é ótima de todos os pontos
de vista. A ilha tem oito quilómetros e alberga umha populaçom
aproximada de 1.300 habitantes, dos quais 600 som
presos comuns, isto é, delinquentes várias vezes reincidentes.
A populaçom é mui amável. Ainda nom estamos todos instalados:
dormim duas noites num grande quarto comum junto
com os outros amigos; hoje encontro-me já num quartinho de
hotel e se calhar amanhá ou depois de amanhá irei morar para
umha casinha que estám a mobilar para nós: somos tratados
por todos com grande correçom.
Estamos completamente separados dos presos comuns,
cuja vida nom saberia descrever-che em poucas palavras: lem-
49
bras o conto de Kipling intitulado «A estranha cavalgada», no
volume francês O homem que queria ser rei? Véu-me de repente
à memória e tam vivamente que me parecia estar a vivê-
lo. Por enquanto somos quinze amigos. A nossa vida é bem
tranquila: estamos ocupados em explorar a ilha, o qual me
permite dar passeios bastante compridos, por volta de nove
ou dez quilómetros, com paisagens mui amenas e com vistas
maravilhosas da marinha, do abrente e do sol-pôr: cada dous
dias vem o barco, que traz notícias, jornais e novos amigos,
entre os quais o homem de Ortensia, a quem tivem o grande
prazer de encontrar3
. Ustica é bem mais jeitosa do que o
que mostram os cartons postais que che hei mandar: é umha
pequena aldeia de tipo muçulmano, pitoresca e cheia de cor.
Nom podes imaginar o contente que estou de vagabundear de
um cantinho para o outro da ilha e de respirar o ar do mar,
depois deste mês de transferências de um cárcere para o outro,
mas especialmente após os dezasseis dias de Regina Coeli,
decorridos no isolamento mais absoluto. Penso que me vou
converter no campeom ustiquês de lançamento de pedra à
distáncia, porque já vencim a todos os amigos.
Escrevo-che um bocado aos saltos, assim como me vem,
porque ainda estou um pouco canso. Queridíssima Tatiana,
nom podes imaginar a minha emoçom quando no Regina
Coeli vim a tua caligrafia na primeira garrafa de café recebida
e lim o nome de Marietta4
; volvim ser, literalmente, umha
3 Amadeo Bordiga (1889-1970). Foi o primeiro líder do Partido Comunista de
Itália, desde 1921 até 1924, quando Gramsci o sucedeu como Secretário Geral.
Bordiga, estando na oposiçom do partido, foi detido e enviado a Ustica no fim
de 1926, ficando ali até outubro de 1927, quando o transferírom para Ponza,
outra ilha para desterrados, até o fim de 1929. Em 1930 foi expulso do P.C.I.
4 Marietta Bucciareli, amiga de Tatiana Schucht, quem frequëntava regularmente
a casa de Gramsci
50
criança. Olha, neste tempo, sabendo com certeza que as minhas
cartas, segundo as disposiçons carcerárias, iam ser lidas,
nasceu-me umha espécie de pudor: nom me atrevo a escrever
sobre certos sentimentos e se trato de os atenuar para me
adequar à situaçom, parece-me que me comporto como um
sacristám. Por isso vou limitar-me a escrever-che algumhas
notícias sobre a minha estadia em R.C. [Regina Coeli] com
respeito a tudo quanto me perguntes. Recebim o casaco de
lá, que me foi extremamente útil, assim como as meias, etc.
Teria passado muito frio sem elas, porque saim com o abrigo
mais leve e, ao termos saído mui cedo de manhá, quando
tentávamos a travessia Palermo-Ustica estava mui frio. Recebim
os pratinhos que me vira obrigado a deixar com mágoa
em Roma, pois devia meter toda a minha bagagem na bolsa
(que me prestou serviços inestimáveis) e estava seguro de que
os partiria. Nom recebim a candeia, nem o chocolate nem a
bica, que estám proibidos: vim-nos assinalados na lista, mas
com a advertência de que nom podiam passar; de maneira
que nom tivem a xícara para o café, ainda que me decidim a
fazer um serviço de meia dúzia com cascas de ovo, montadas
extraordinariamente sobre um pedestal de miolo de pam.
Vejo que estás impressionada polo facto de as comidas serem
quase sempre frias: nom te preocupes, porque comim sempre,
depois dos primeiros dias, no mínimo, o duplo do que comera
no mesom, e nom sentim a menor moléstia; todavia, soubem
que todos os amigos sofrêrom moléstias e tivérom de abusar
dos purgantes. Vou-me convencendo de que som mais forte
do que nunca pudeche imaginar, porque, a diferença de todos,
saim-me bem, com um simples cansaço. Asseguro-te que,
com a exceçom de umhas pouquíssimas horas de obscuridade,
umha noite em que nos tirárom a luz das celas, estivem sempre
mui contente; o trasgo que me leva a ver sempre o lado
51
cómico e caricatural em todas as cousas estivo sempre ativo
em mim e conservou-me alegre apesar de tudo. Lim sempre,
ou quase, revistas ilustradas e jornais desportivos e estava a
refazer umha biblioteca. Aqui estabelecim este programa: 1º
estar bom para estar sempre melhor de saúde, 2º estudar a língua
alemá e russa com método e continuidade; 3º estudar economia
e história. Entre nós havemos fazer ginástica racional,
etc., etc. Cumpre que nestes primeiros dias, até acabar de me
instalar, che encomende uns trabalhos. Gostaria de ter umha
bolsa de viagem, mas que seja segura, com fechadura ou com
cadeado: é melhor que qualquer mala ou cofre, ante a possibilidade,
que nom excluo, de posteriores movimentos meus
polas ilhas ou para terra firme. Depois, precisaria todas essas
pequenas cousas, como a gillette com láminas de recámbio, a
tesourinha para as unhas, a lima, etc., etc., que som sempre
necessárias e que nom estám à venda; queria algum tubo de
aspirina, por se os refachos me fam sangrar os dentes. Com
a roupa, o abrigo e a roupa branca que resta, acho darás feito.
Envia-me depressa, se puderes, a gramática alemá e umha
gramática russa; o dicionário pequeno de alemám-italiano e
italiano-alemám e algum livro (Max e Moritz5
— e a história
da literatura italiana de Vossler, se a deres encontrado entre os
livros). Envia-me aquele volume grande de artigos e estudos
sobre o risorgimento italiano que se intitula: Storia politica del
secolo XIX e um livro intitulado: R. Ciasca, La formazione del
programma dell’unità nazionale, ou algo parecido. Além disso,
vê tu mesma e decide o que a ti che pareça. Por esta vez, escreve
tu a Giulia: nom consigo vencer esse sentido do pudor de
que che falava há pouco: alegrou-me muito conhecer as boas
5 Conto para crianças escrita por Wilhelm Busch (1865).
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notícias sobre Delio e Giulio; espero as fotografias. O endere-
ço usado por ti é corretíssimo, como viche; aqui os correios
funcionam de umha maneira simples: som eu a perguntar no
balcom pola posta-restante, e em Ustica só há umha oficina
postal. A propósito dos telegramas enviados, o de Roma, que
anunciava a minha partida, sabia com certeza que iria chegar
com muita demora, mas queria dar a conhecer a notícia e
nom excluía que pudesse ser útil para umha conversa, caso o
receptor tivesse sabido que era possível vir até 11 da noite. De
cinco que partírom unicamente Molinelli, que viajou sempre
comigo, recebeu a visita da mulher às 11 justas: os outros nada.
Queridíssima Tatiana, se nom che escrevim antes, nom
deves crer nem por um instante que te esquecesse nem que
nom pensasse em ti; a tua expressom é exata, porque em cada
cousa que recebia, via em destaque o sinal das tuas queridas
maos; era mais do que um cumprimento, mais do que umha
carícia afetuosa: teria gostado de ter o endereço da Marietta;
se calhar, escrevia também para a Nilde6
, o que achas? Lembrará-me?
Gostará dos meus cumprimentos? Escrever e receber
cartas converteu-se para mim num dos momentos mais
intensos da vida.
Queridíssima Tatiana, escrevo-che de umha maneira um
pouco confusa. Creio que hoje, 10, o barco nom vai dar chegado,
porque durante toda a noite houvo um vento fortíssimo
que nom me deixou dormir, apesar da suavidade da cama e
dos coxins, aos quais já me desabituara; é um vento que penetra
por todas as fendas do terraço, pola janela e polas portas,
com assobios e sons de trompetes mui pitorescos, mas mui
6 Leonilde Perilli, companheira de estudos de Eugenia Schucht na Academia
de Belas Artes de Roma, e amiga dos Schucht. Hospedou a Tatiana na sua casa
durante uns anos.
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irritantes. Escreve para a Giulia e di-lhe que estou bem de verdade,
de todos os pontos de vista, e que a minha permanência
aqui, que por outra parte nom creio seja tam comprida como
decidiu o decreto, há de tirar do meu corpo todos os velhos
achaques: talvez um período de repouso absoluto seja incluso
umha necessidade para mim.
Abraço-te com tenrura, queridíssima, porque abraçandote
abraço a todos aqueles a quem eu quero.
Se Nilde aprecia os meus cumprimentos, manda-me o seu
endereço.
Antonio
•
(Carta 4)
Ustica, 19 XII 1926
Queridíssima Tania:
Escrevim-che um postal o 18 para avisar de que tinha recebido
a tua registada do 14: previamente, tinha escrito para ti umha
comprida carta ao endereço da senhora Passarge, quem cha
deveu ter entregado o 11 ou o 12. Resumo os principais acontecimentos
de todo este tempo.
Detido o 8 às 10:30, e conduzido imediatamente ao cárcere,
partim de Roma de manhá, mui cedo, o 25 de novembro. A
permanência em Regina Coeli foi o período mais difícil do
arresto: 16 dias de isolamento absoluto na cela, com umha disciplina
mui rigorosa. Pudem ter um quarto pagando, mas só
nos últimos dias. Decorrim os primeiros três dias numha cela
mui luminosa de dia e iluminada de noite; no entanto, a cama
estava mui suja; os lençóis estavam usados; formiguejavam
nela os insectos mais variados; nom me foi possível ter algo
54
para ler, nem sequer a «Gazzetta dello Sport», porque ainda
nom a reservei: comim a sopa do cárcere, que estava bem boa.
Passei depois para umha nova cela, mais obscura de dia e sem
iluminaçom à noite, a diferença da outra, esta tinha sido desinfectada
com chama de gasolina e a cama tinha a roupa limpa.
Comecei a comprar algumha cousa na cantina do cárcere:
as candeias de estearina para a noite, o leite para a manhá,
umha sopa com caldo de carne e um pedaço de carne cozida,
queijo, vinho, maçás, cigarros, jornais e revistas ilustradas.
Passei da cela comum para a de pagamento sem prévio aviso,
polo que estivem um dia sem comer, dado que o cárcere passa
a comida somente aos ocupantes das celas comuns, enquanto
os dos quartos de pagamento devem «buscar-se as favas» (expressom
carcerária) por si próprios. Em meu caso, o quarto de
pagamento consistiu em que somassem ao xergom de crina
um colchom de lá e um coxim ídem e que a cela estivesse mobilada
com umha bacia, umha jarra e umha cadeira. Deveria
ter também ao meu dispor um talho, um bengaleiro e um pequeno
roupeiro, mas a administraçom está falta de «material
de intendência» (outra expressom carcerária): tivem também
luz elétrica, mas sem interruptor; de maneira que durante
toda a noite me revirava para proteger os olhos da luz. A vida
transcorria assim: às 7 da manhá diana e limpeza do quarto;
contra as nove, o leite, que com o tempo se converteu em café
com leite, quando comecei a receber a comida da cantina. O
café chegava polo geral ainda morno; o leite, polo contrário,
estava sempre frio, mas eu fazia entom umha abundante sopa.
De nove até o meio-dia tocava a hora do passeio: umha hora,
de nove até dez, ou de dez até onze, ou de onze até doze; faziam-nos
sair separados, com a proibiçom de falarmos e de
saudarmos quem quer que fosse, e íamos para um pátio circular
dividido em rádios por muros de separaçom altíssimos,
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com umha grade que dava para o resto do pátio. Éramos vigiados
por umha sentinela erguida sobre um terracinho que
dominava os setores radiais e por umha sentinela que passeava
diante das grades; o pátio estava encaixado entre muros
altíssimos e estava dominado, num dos lados, pola chaminé
baixa de um pequeno obradoiro interno; por vezes o ar era
fumo; umha vez tivemos de permanecer por volta de meia
hora baixo a tormenta. Contra o meio-dia chegava o jantar;
frequentemente, a sopa estava ainda morna, mas o resto estava
sempre frio. Às 3 havia a visita à cela, para a revisom das barras
da grade; a visita repetia-se às dez da noite e às três da
manhá. Dormia um bocado entre estas duas últimas visitas:
umha vez me acordava a visita das três já nom conseguia
adormecer; porém, era obrigado ficar na cama entre 7½ da
tarde e o amanhecer. A distracçom proporcionavam-na as diferentes
vozes e os fragmentos das conversas que por vezes
conseguia ouvir das celas do lado ou de em frente. Nunca incorrim
em nengum castigo: Maffi7
, no entanto, estivo três dias
a pam e água numha cela de castigo. Na verdade, nunca sentim
mal-estar nengum: embora nunca desse acabado toda a
comida, comim sempre com um apetite maior que o do mesom.
Tinha apenas umha colher de madeira; nem garfo, nem
copo. Umha jarra e umha jarrinha de barro para a água e para
o vinho; um prato grande de barro para a sopa e outra como
bacia, antes da concessom do quarto de pagamento. A 19 de
novembro foi-me comunicada a disposiçom que me condenava
a 5 anos de desterro nas colónias, sem mais explicaçom.
Nos dias sucessivos chegárom-me rumores de que partiria
para Somália. Só na tarde do 24, e indiretamente, soubem que
7 Fabrizio Maffi (1868-1955), médico, militante socialista e mais tarde comunista,
deputado.
56
cumpriria a pena de desterro numha ilha italiana: o destino
exato só me foi comunicado de maneira oficial em Palermo;
podia ir para Ustica, mas também para Favignana, para Pantelleria
ou para Lampedusa; foram excluídas as Tremiti, porque
de outro jeito teria viajado de Caserta a Foggia. Partim de
Roma na manhá do 25, com o primeiro comboio dos correios
para Nápoles, aonde cheguei por volta de umha da tarde; viajei
na companhia de Molinelli, Ferrari, Volpi e Picelli, também
eles detidos o dia 8. Ferrari, porém, foi apartado em Caserta
para as Tremiti: digo «apartado», porque mesmo no vagom
permanecíamos juntos e amarrados a umha longa cadeia. De
Roma em diante fiquei sempre em companhia, o qual produziu
umha notável mudança no estado de ánimo: era possível
conversar e rir, embora estivéssemos amarrados à cadeia e
com os dous pulsos apertados polas algemas e se tivesse que
comer e fumar com tais adornos. Porém, a gente conseguia
acender os fósforos, conseguia comer e beber; os pulsos inchá-
rom um pouco, mas tinha-se a noçom do perfeita que é a maquina
humana, quando pode adaptar-se a qualquer circunstáncia,
por anti-natural que ela for. No limite das disposiçons
regulamentares, os guardas da escolta tratárom-nos com grande
correçom e cortesia. Ficamos em Nápoles duas noites, no
cárcere de Il Carmine, sempre juntos, e voltamos sair por mar
na tarde do 27, com um mar mui calmo. Em Palermo tivemos
um quartinho mui limpo e arejado, com umha vista belíssima
do monte Pellegrino; encontrámos outros amigos destinados
às ilhas, o deputado maximalista Conca, de Verona e o advogado
Angeloni, republicano de Perugia. Acrescentárom-se outros
a seguir, entre os quais Maffi, que fora destinado a Pantelleria,
e Bordiga, destinado a Ustica. Deveria ter saído de
Palermo o dia 2; porém, só conseguim partir o dia 7; três tentativas
de travessia fracassárom polo mar bravo. Esta foi a pior
57
parte da transferência. Pensa: diana às quatro da manhá, as
formalidades para a entrega do dinheiro e das diferentes cousas
deixadas em depósito, algemas e cadeia, veículo celular até
o porto, baixada à lancha para chegar ao barco, subida da escada
para subir a bordo, subida de umha escada para subir à
ponte, descida de umha outra escada para ir à seçom de terceira
classe; todo isso tendo os pulsos amarrados e estando
amarrado com umha cadeia a outros três. Às sete o barco parte,
viaja durante umha hora e meia, dançando e mexendo-se
como um golfinho, depois volta para trás, porque o capitám
admite que é impossível continuar a travessia. Repete-se no
sentido contrário a série das escadas, etc., volta-se para o cárcere,
somos novamente registados e voltamos para a cela; entretanto,
já é meio dia, nom deu para pedir o jantar; até 5 nom
se come; na manhá a seguir ainda nom se comerá. Isto tudo
por quatro vezes com o intervalo de um dia. A Ustica chegaram
já quatro amigos: Conca, o ex deputado de Perugia Sbaraglini,
e dous de Aquila. Durante algumhas noites dormimos
num sala: agora estamos já instalados numha casa ao nosso
dispor, para seis: eu, Bordiga, o Conca, os Sbaraglini e os dous
de Aquila. A casa compom-se de um quarto no rês-do-chao
onde dormem dous: no rês-do-chao está também a cozinha, a
sanita, e um quartinho que usamos como sala comum de toilette.
No primeiro andar, dormimos quatro em dous quartos,
três num quarto bastante grande e um no quartinho do meio;
um amplo terraço está por cima do quarto maior e domina a
cala. Pagamos 100 liras por mês pola casa, e duas liras por dia
pola cama, a roupa branca da cama e os demais objetos domésticos
(duas liras por cabeça). Os primeiros dias gastamos
muito nas comidas; nom menos de 20 liras por dia. Agora gastamos
10 liras por dia da mazzetta polo jantar e a ceia; estamos
a organizar umha cantina comum, que nos permitirá, se
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calhar, viver com as 10 liras por dia que nos adjudicou o governo;
somos já trinta desterrados e ainda há de chegar algum
mais.
As nossas obrigas som variadas e complexas; a mais salientável
é a de nom sairmos da casa antes do amanhecer e
a de voltar para a casa às 8 da tarde; nom podemos ir além
de determinados limites que, em linhas gerais estám representados
polo perímetro habitado. No entanto, conseguimos
licenças que nos permitem passear por todo o território da
ilha, com a obriga de voltar dentro dos limites às 5 da tarde.
A populaçom em conjunto é de perto de 1.600 habitantes,
dos quais 600 som forçados, isto é, delinquentes comuns que
já cumprírom outras condenas. A populaçom indígena compom-se
de sicilianos, mui amáveis e hospitaleiros; podemos
relacionar-nos com a populaçom. Os presos estám submetidos
a um regime mui restritivo; a grande maioria, dado o pequeno
tamanho da ilha, nom pode ter nengum ocupaçom e tem que
viver coas 4 liras diárias que lhes adjudica o governo. Podes
imaginar o que acontece: a mazzetta (é o termo que se utiliza
para indicar a pensom do governo) gasta-se principalmente
em vinho; as comidas reduzem-se a um pouco de massa com
ervas e a um pouco de pam; a desnutriçom leva ao alcoolismo
mais depravado num prazo mui breve. Estes presos som
encerrados em celas especiais às cinco da tarde e estám juntos
toda a noite (entre cinco da tarde e sete da manhá), fechados
desde fora: jogam às cartas, em ocasions perdem a mazzetta
de bastantes dias e desta maneira vêem-se prisioneiros num
círculo infernal que dura até o infinito. Deste ponto de vista,
é um autêntico pecado que se nos proiba ter contatos com
seres reduzidos a umha vida tam excecional: acho poderiam
fazer-se observaçons de tipo psicológico e de folclore com um
caráter único. Todo aquilo quanto de elementar sobrevive no
59
homem moderno, volta à tona irremediavelmente: estas moléculas
pulverizadas agrupam-se novamente conforme princí-
pios que se correspondem com aquilo que de essencial existe
ainda nos estratos populares mais profundos. Existem quatro
divisons fundamentais: os setentrionais, os centrais, os meridionais
(com Sicília) e os sardos. Os sardos vivem absolutamente
afastados do resto. Os setentrionais possuem umha
certa solidariedade entre eles, mas nengumha organizaçom,
polo que parece; orgulham-se porque, mesmo sendo ladrons,
carteiristas, caloteiros, nom derramárom nunca sangue. Entre
os do Centro, os romanos som os melhor organizados; nem
sequer denunciam aos confidentes os das outras regions, guardando
para si a desconfiança. Os meridionais estám mui organizados,
se devemos julgar polo que se di, mas entre eles há
subdivisons: o Estado napolitano, o Estado pulhês e o Estado
siciliano. Para o siciliano, o motivo de orgulho consiste, nom
em ter roubado, mas em ter derramado sangue. Todas estas
informaçons obtivem-nas de um preso que se encontrava no
cárcere de Palermo cumprindo condena por um crime que
cometera durante o período de desterro e que se orgulhava
de ter causado conforme um plano previamente estabelecido,
umha ferida com umha profundidade de dez centímetros
(medida, di ele) ao carcereiro que o mal-tratara: planificara
dez centímetros e fôrom dez centímetros, nem um milímetro
a mais. Esta era a obra mestra da qual se orgulhava em extremo.
Acredita que a referência ao romance de Kipling nom era
exagero, ao menos considerando as impressons do primeiro
dia. A minha situaçom financeira durante este tempo foi ótima.
Fum detido com 680 liras no bolso; em Roma vim somadas
ao meu favor outras 50 liras. Os gastos incrementárom-se
de maneira alarmante só depois da saída de Roma. Em Palermo,
principalmente, esfolárom-nos de maneira literal: o ho-
60
teleiro marcou com 30 liras um pacote com umha porçom de
macarrons, ½ litro de vinho, ¼ de frango e fruta que serviam
para duas comidas. Cheguei a Ustica com 250 liras que me
chegárom para os primeiros 10 dias; depois tivem 100 liras
de mazzetta (10 liras por dia), as tuas 500 liras e 374 liras pola
imunidade parlamentar, para os dias compreendidos entre 1 e
9 de novembro.
Portanto, estivem bem durante bastante tempo, isto é,
podo tomar algum café, fumar cigarros e completar o gasto
diário para a casa e a comida, que hoje é de 14 liras por dia,
mas que diminuirá assim que tenhamos organizada a cantina.
É por isso que nom deves preocupar-te por mim: nom quero
de nengumha maneira que te sacrifiques pessoalmente por
mim: se tiveres a hipótese, oferece a tua ajuda a Giulia, que
com certeza necessitará mais cousas do que eu.
Na anterior ocasiom nom che escrevim que, recém chegado
a Ustica, encontrei umha carta em que se me assegurava
que Giulia ia receber as ajudas, e que nom devia preocuparme
nesse sentido. Recorrerei a ti para ter algumhas cousas
que de outra maneira nom poderia ter: porém, em geral estou
decidido a fazer de maneira que poda viver com a mazzetta
governamental, já que o considero possível, depois de algum
tempo de aclimataçom. Queria-che dizer outra cousa importantíssima:
o amigo Sraffa escreveu-me que abriu para mim
umha conta corrente ilimitada numha livraria de Milám8
, na
qual poderei encarregar jornais, revistas e livros; aliás, ofereceu-me
todas a ajuda que quiger. Como vês, podo olhar para
o porvir com suficiente serenidade. Se tiver a segurança de
que Giulia e as crianças nom vam sofrer qualquer privaçom,
8 A livraria Sperling & Kupfer, da qual G. se serviu sempre nos seguintes anos.
61
estarei realmente tranquilo: querida Tatiana, este é o único
pensamento que me atormenta nos últimos tempos, e nom
apenas depois do meu arresto; sentia vir esta tormenta, de
maneira imprecisa e instintiva e por isso mais tormentosa.
Lembras quando me digeche que umha amiga comum aludia
à minha superstiçom? Voltei pensar nisso algumha vez, nom
para convencer-me mais umha vez de que tinha razom e de
que exagerei, nom por superstiçom, mas sim por falta de decisom
e por outros escrúpulos que intelectualmente considero
de caráter inferior, nom obstante nom fosse nem seja capaz de
me libertar deles. De facto, a análise que fazia era exata, mesmo
se me parecia impossível umha demonstraçom objetiva e
pormenorizada.
Olha que escrevim com essa abundáncia que desejavas,
escrevendo também sobre cousinhas sem a mais mínima importáncia.
Estás contente? Sabes que te quero muito e que lamento
muito lembrar algum pequeno episódio em que por
um descuido, de algumha maneira, che figem mal.
Escreve tu a Giulia também em meu nome; nom tenho
vontade de mandar-che os desenhos para Delio: teria que
explicá-los e isso desagrada-me enormemente. Aguardo as
fotografias. Entre os livros que deves enviar-me inclui os seguintes:
—Hauser— Les Grandes puissances, Le prospettive
economiche de Mortara para 1926, os dous Berlitz — alemám
e russo. Entre os objetos, gostava de um pouco de sabom, um
pouco de água de colónia para a barba, umha escova de dentes
com o seu vidro de protecçom, um pouco de dentífrico,
umhas poucas aspirinas e umha escova para a roupa.
Queridíssima Tatiana, abraço-te afetuosamente.
Antonio
CARTA 10
21/XII/1926
Queridíssimo amigo9
,
recebim a tua carta do 13; no entanto, nom recebim ainda os
livros que me anunciavas. Agradeço-che mui cordialmente o
oferecimento que me figeche; já escrevim à Livraria Sperling e
figem umha encomenda bastante aparatosa, com a certeza de
nom ser indiscreto, porque conheço toda a tua amabilidade.
Somos em Ustica 30 desterrados: iniciámos já toda umha série
de cursos, elementares e de cultura geral, para os diferentes
grupos de desterrados; começaremos também umha série de
palestras. Bordiga dirige a seçom científica, eu a seçom histó-
rico-literária; eis a razom pola qual encomendei determinados
livros. Esperemos que desta maneira decorra o tempo sem nos
embrutecer e sendo úteis aos outros amigos, representantes
de todo o tipo de partidos e de preparaçom cultural. Comigo
estám Schiavello e Fiorio10, de Milám; dos maximalistas está
também o ex deputado Conca de Milám. Dos unitários está o
advogado Sbaraglini, de Perusa e um magnífico tipo de camponês
de Molinella. Um republicano de Massa e 6 anarquistas
de composiçom moral complexa; o resto comunistas, isto é, a
grande maioria. Há 3 ou 4 analfabetas ou quase; o resto tem
diversa preparaçom, mas com umha média geral mui baixa.
9 Piero Sraffa (1898-1983), professor de economia em Cambridge. Gramsci
conheceu-no em Turim na época da universidade e ali se figérom amigos. Sraffa
esforçou-se durante os anos do cárcere por ajudar a Gramsci: mantivo correspondência
com Tatiana Schucht, fijo viagens a Italia e mesmo pudo arranjar
várias conversas com Gramsci. Conseguiu interessar pola sua sorte a altas personalidades
inglesas.
10 Ernesto Schiavello (n. 1899), organizador sindical de Milám, decorreu sete
anos entre cárcere e desterro.
63
Porém, todos estám contentes por terem umha escola, que frequentam
com grande assiduidade e diligência.
A situaçom financeira ainda é boa: aos desterrados damnos
10 liras por dia; a mazzetta dos presos comuns em Ustica
é de 4 liras por dia, nas outras ilhas por vezes é mesmo menor,
se existirem possibilidades de trabalhar. Nós temos o direito
a morar em casas particulares; seis pessoas (eu, Bordiga,
Conca, Sbaraglini e dous mais) moramos numha casinha pola
qual pagamos 90 liras por mês cada um, com todos os serviços
incluídos. Contamos organizar umha cantina, a fim de
podermos satisfazer as necessidades de comida e casa com as
10 liras diárias da mazzetta. A comida, naturalmente, é mui
pouco variada: nom se encontram ovos, por exemplo, o qual
me amola bastante, porque nom podo fazer pratos abundantes
ao estilo marinheiro. O regime que devemos seguir consiste
em recolher-se em casa às 8 da tarde e nom sair dela antes
do amanhecer nem ir além dos limites habitados sem umha
licença especial.
A ilha é pequena (8 km.) com umha populaçom de 1600
habitantes, dos quais 600, aproximadamente, som presos comuns:
existe um único grupo de vivendas. O clima é ótimo
e até agora nom estivo frio; apesar disso, os correios chegam
sem regularidade, porque o barco que fai a travessia quatro
vezes por semana nem sempre pode com o vento e as ondas.
Para chegar a Ustica tivem que fazer quatro tentativas de travessia;
isso cansou-me mais do que toda a viagem de Roma
a Palermo. Contudo, permanecim sempre em ótimas condi-
çons de saúde, para grande surpresa dos meus amigos, pois
todos tenhem sofrido mais do que eu: imagina que até engordei
levemente. Porém, nestes dias, quer polo cansaço atrasado,
quer pola comida que nom se condiz com os meus costumes
e a minha constituiçom, sinto-me mui débil e esgotado. Mas
64
aguardo afazer-me rapidamente e dar cabo, de vez, de todos
os males passados.
Escreverei-che amiúde, se quigeres, para me iludir com
que me encontro ainda na tua grata companhia. Saudo-te com
afeto
Antonio
•
(Carta 6)
2/I/1927
Queridíssimo11,
recebim os livros que me anunciavas na penúltima carta e um
primeiro pacote dos que encomendara. Tenho portanto bastante
para ler durante algum tempo. Agradeço a tua grande
amabilidade, mas nom queria abusar. Porém, tem a certeza de
que sinceramente me dirigirei a ti sempre que precisar qualquer
cousa. Como podes imaginar, aqui nom há muito para
comprar; antes polo contrário, por vezes escasseia o que comprar,
mesmo se a compra for necessária.
A vida decorre sem novidade nem surpresas; a única preocupaçom
é a chegada do barco, que nem sempre consegue
fazer os quatro trajetos semanais (segunda-feira, quarta-feira,
quinta-feira e sábado) com grande pesar para cada um de nós,
que aguarda sempre com ánsia a correspondência. Somos já
uns sessenta, dos quais 36 som amigos de diferentes lugares;
predominam relativamente os romanos. Já começamos a escola,
dividida em vários cursos: 1° curso (1º e 2º elementar),
11 Dirige-se a Piero Sraffa.
65
2° curso (3º elementar), 3° curso (4º – 5º elementar), curso
complementar, dous cursos de francês (inferior e superior) e
um curso de alemám. Os cursos estabelecem-se em relaçom
ao nível cultural que se tem nas matérias, que podem ser resumidas
num certo conjunto de noçons delimitadas com exatitude
(gramática e matemática); nesse sentido, os alunos dos
cursos elementares frequentam as aulas de História e Geografia
do curso complementar, por exemplo. Em resumo, procuramos
conciliar a necessidade de umha ordem escolástica
gradual com o facto de os alunos terem, mesmo se nalguns
casos semianalfabetas, umha certa instruçom. Os cursos som
seguidos com grande diligência e atençom. Graças à escola,
que é frequentada também por alguns funcionários e habitantes
da ilha, evitamos os perigos da desmoralizaçom, que
som mui grandes. Nom poderias imaginar a que condiçons de
embrutecimento físico e moral tenhem chegado os presos comuns.
Para poder beber venderiam até a camisa; muitos vendêrom
os sapatos e o casaco. Um bom número nom dispom
já livremente da mazzetta governamental de quatro liras diá-
rias, porque foi empenhada aos usurários. A usura é punida,
mas nom creio que seja possível evitá-la, porque os próprios
presos comuns, que som as suas vítimas, nom denunciam os
usurários senom em casos mui excecionais. Paga-se um juro
de 3 liras por semana por 10 liras de empréstimo. Os juros
arrecadam-se com extrema intransigência, já que os usurários
se rodeiam de pequenos grupos de colaboradores, que por um
copo de vinho destripariam mesmo os seus bisavós. Os presos
comuns, salvo raras exceçons, mostram muito respeito e
deferência por nós. A populaçom da ilha é mui educada. De
resto, a nossa chegada causou umha mudança radical no lugar
e deixará amplas pegadas. Está-se a planificar a instalaçom da
luz elétrica, visto que entre os desterrados há técnicos capazes
66
de levar a termo a iniciativa. O relógio do campanário, que estava
parado desde há seis messes, foi posto em funcionamento
em dous dias: talvez se retome o projeto de construir o cais
para a entrada do barco no porto. As nossas relaçons com as
autoridades som mui corretas.
Queria escrever-che algumhas impressons recolhidas durante
a viagem, nomeadamente em Palermo e em Nápoles.
Em Palermo fiquei oito dias: tentou-se quatro vezes a travessia,
e em três ocasions, após umha hora e tal de navegaçom
com o mar revolto, tivemos de voltar atrás. Foi a parte mais
desconfortável de toda a viagem, a que mais me cansou. Tinha
de acordar às quatro da manhá, ir até o porto com os
ferros nos pulsos; sempre amarrados e ligados com umha cadeia,
descer numha lancha, subir e descer bastantes escadas
no barco, onde permanecíamos amarrados com umha única
algema, sofrer o enjôo, quer pola posiçom incómoda (estávamos
amarrados, embora com umha única cadeia e unidos aos
demais por meio metro de cadeia; era, pois, impossível deitarse)
quer porque o pequeníssimo e ligeiro barco abana, mesmo
se o mar estiver em calma, para voltar atrás e repetir a manhá
seguinte a mesma história. Em Palermo tínhamos um quartinho
mui limpo, preparado de propósito para nós (deputados),
dado que o cárcere está superlotado e assim se evitava pôr-nos
em contato com os detidos da máfia. Durante a viagem fomos
sempre tratados com grande correçom e até com cortesia.
Muito obrigado por te tomares a moléstia de enviar os
ovos. Agora que passárom as festas, encontrarei-nos mui frescos
por aqui. Agradecia o leite condensado suíço, se quigeres
mandar-mo. Nom saberia que pedir-che, mesmo querendo:
aqui falta um pouco de tudo e é difícil conseguir certas cosas;
é preciso dar longas voltas. Nom existe um serviço de correios
com Palermo. Agradecia-che que me enviasses um pouco de
67
sabom para o asseio e para fazer a barba, e algum medicamento
de uso geral, que sempre se pode necessitar, como a
aspirina Bayer (aqui a aspirina é umha visom do céu) e tintura
de iodo e algum comprimido para a enxaqueca. Garanto-che
mais umha vez que che escreverei se for necessário:
viche quanto me prestárom os livros? De resto, confesso-te
que ainda estou um pouco atordoado, e nom acabei ainda de
me orientar por completo em tantas cousas. Escreve-me ami-
úde: a correspondência é o que mais se agradece na minha
situaçom. Quando leias algum livro interessante como o de
Lewinsohn12, envia-mo.
Abraço-te fraternalmente
Antonio
Envia-me um frasquinho de água de Colónia. Fai-me falta un
desinfetante para depois de fazer a barba.
•
(Carta 7)
7/II/1927
Queridíssima Tania:
recebim a tua carta do 4 de janeiro, um pacote que continha
objetos de asseio e o bolso de viagem, mais um segundo pacote
que continha panettoni13 e que deveu chegar com muito
atraso. Na verdade, nom podo aceitar o conselho de... encon-
12 Richard Lewinsohn, Histoire de l’inflation. Le deplacement de la richesse en
Europe (1914-1925), Payot, Paris, 1926.
13 O panettone é um pastel que se come principalmente no Natal; é um biscoito
mole com frutos secos. [N. do T.]
68
trar caprichos. Infelizmente, nas condiçons em que estou obrigado
a viver, os caprichos venhem sós: é inacreditável como
as pessoas obrigadas por forças externas a viverem de maneira
excecional e artificial desenvolvem com particular brio todos
os lados negativos do seu caráter, principalmente os intelectuais,
ou, melhor dito, essa categoria de intelectuais que em
italiano coloquial som chamados de mezze calzette14. Os mais
calmos, serenos e medidos som os camponeses; depois venhem
os operários, depois os artesaos e para acabar os intelectuais,
que sofrem lufadas imprevistas de umha loucura absurda
e infantil. Naturalmente, falo dos desterrados políticos,
nom dos presos comuns, cuja vida é primitiva e elementar,
e cujas paixons alcançam, com rapidez espantosa, o culmen
da loucura: num mês verificárom-se entre os presos comuns
cinco ou seis crimes de sangue.
Nom seguirei, portanto, o teu conselho de ter caprichos.
E porém, tés razom: por vezes comporto-me mal sem querer,
ofendendo os meus amigos sem sabê-lo. Isso explica-se, creio,
porque sempre vivim em soidade, sem família, e tivem que
recorrer a estranhos para as minhas necessidades: é por isso
que tivem sempre medo de incomodar e de estorvar. Mas nom
havia em mim nengumha falta de reconhecimento do teu afeto
e da tua bondade. Recorrerei a ti sempre que for necessário,
com o compromisso, pola tua parte, de seres extremamente
sincera sobre as tuas possibilidades e de nom te procurares
problemas inúteis e perigosos. A tinta que me mandache vai
mui bem; para além disso, vam bem todas as demais cousas.
Recebim as fotografias: Delio tivo muito sucesso e foi mui louvado.
Imagina que descobrim ter umha dose de paciência e de
14 Medíocres, de meia-tigela. [N. do T.]
69
fortaleza que nom achava possuir: só Bordiga pode competir
comigo. Somos os únicos em todo este período em nom sentir
mal-estares de nengumha classe, enquanto os demais, quem
mais quem menos, tivo febres gripais e moléstias intestinais,
devido à mudança radical dos alimentos e à água, em que nadam
de maneira visível exemplares, magníficos pola sua agilidade,
da raça dos tritons. Nom comecei até agora nengum
trabalho sério, embora tenha já à minha disposiçom umha
discreta quantidade de livros; comecei no entanto as aulas de
História do curso de cultura geral que organizáramos. Por isso
nom deves preocupar-te por enviar rapidamente os livros.
Porém, necessito um pouco de dinheiro. Achava ter o
suficiente, para três messes no mínimo: tivem de gastar para
ajudar a um certo número de desterrados que chegárom sem
recursos, e tivem de antecipar dinheiro para as despesas gerais
da cantina comunal que vai começar depois de amanhá,
día 9. O período das despesas imprevistas já passou: a cantina
comunitária permitirá evitarmos as grandes e pequenas despesas
a que até agora estávamos obrigados para poder comer.
Olha que o digo com sinceridade: fam-me falta umhas 200
liras, e nom tenho mesmo vontade de pedir-lhas a Sraffa, que
neste momento se encontra longe da sua casa.
Queridíssima Tania, gostava mesmo de saber-te tranquila
e sem nengum ataque de melancolia. Porém, deves escreverme
igualmente, e confessar-te comigo: as tuas cartas som um
grande prazer para mim porque me sinto, com cada umha delas,
perto de ti. Sabes que recebim um postal de Giulia com a
assinatura autógrafa de Delio? Parece inacreditável: o mundo
é sempre mais pequeno do que pensamos. Escreverei-che ainda
umha longa carta para o correio da segunda-feira, embora
exista a probabilidade de o barco nom chegar na segundafeira.
Entrámos no Inverno também em Ustica. Inverno mui
70
suave, porque se pode ir dar umha volta sem chapéu e sem
casaco; contudo, chove amiúde e frequentemente sopram refachos
mui fortes que agitam o mar e impedem a navegaçom.
Mas fora disso, que dias tam magníficos! Nom podes imaginar
as tonalidades que chegam a adquirir o mar e o céu nos dias
claros.
Saúda Giacomo e a mulher. Conhecim o amigo de Valentino15,
que é um ótimo rapaz. Um abraço
Antonio
Envia-me algum número do «Temps» e do «Journal des dé-
bats»: podes encontrá-los na banca dos jornais do Palácio das
Finanças.
Os sapatos que me descreves serám bons para a próxima
Primavera, acho. Os que calçava no momento da partida, nom
obstante estejam remendados (lembras?) resistem milagrosamente.
Manda-me notícias sobre o pequeno limoeiro: cresceu?
Qual é a sua altura já? É resistente? Queria escrever-che sobre
isto, mas passei por cima, por nom parecer demasiado...
infantil.
•
15 Valentino Schreider (n. 1903), estudante, comunista, filho do social-revolucionário
Isaac Schreider; foi detido em abril de 1927, junto a um grupo de
comunistas romanos, sendo condenado a cinco anos de cárcere.
71
(Carta 8)
15/I/1927
Queridíssima Tania,
a última carta que me enviache tem a data de 4 de janeiro.
Deixache-me onze dias sem notícias tuas. Nas condiçons em
que me encontro, é umha cousa que preocupa muito. Acho
que é possível acordar as exigências recíprocas, com o compromisso
pola tua parte de enviar-me polo menos um postal
cada três dias. Eu já comecei a seguir este sistema. Quando
nom tenha tema para umha carta —e para mim esse é o caso
mais comum—, enviarei-che polo menos um postal, a fim
de nom renunciar a nengum serviço postal: a vida decorre
aqui monótona, uniforme, sem sobressaltos. Se calhar, devia
descrever-che algumha pequena cena da vida da aldeia,
se estivesse com suficiente bom humor. Por exemplo, podia
descrever-che o arresto de um porco que encontrárom polas
corredoiras, livre e sem licença, e que foi conduzido para o
cárcere conforme manda o regulamento: o facto divertiu-me
enormemente, mas tenho a certeza de que nem tu nem Giulia
ides acreditar; talvez acredite Delka16 quando tiver algum ano
mais e escuite a história, junto com outras do mesmo tipo (a
dos óculos verdes, etc.), igualmente autênticas e dignas de serem
acreditadas sem risinhos. Também me divertiu a maneira
de arrestar o porco: agarrando-o polas patas traseiras e tirando
dele como de um carrinho, enquanto ele berra como um
condenado. Nom houvo maneira de conseguir informaçons
precisas sobre como se poderia identificar o abuso do pasto
e dos caminhos: acho que os vigiantes da higiene conhecem
todo o gado miúdo da aldeia. Umha outra particularidade que
16 Diminutivo russo de Delio.
72
nunca mencionei é que nom vim ainda em toda a ilha nengum
médio de transporte a exceçom do burro, um magnífico
animal, na verdade, de grande estatura e de umha natureza
doméstica notável, sinal do bom caráter dos habitantes: na
minha aldeia os burros som meio selvagens e mal deixam que
se aproximem deles os donos. Ainda mais umha de animais:
escutei ontem umha magnífica história sobre cavalos, contada
por um árabe aqui desterrado. O árabe falava o italiano de
maneira bem estranha e com muitas expressons incompreensíveis:
contudo, em geral a anedota estava cheia de cores e de
força descritiva. Isto lembra-me, por umha associaçom mui
estranha, que soubem que era bastante fácil encontrar o famoso
trigo mourisco: uns amigos vénetos dim que é mui comum
no Véneto para fazer a polenta.
Esgotei assim um certo stok de temas para falar. Aguardo
ter-te feito sorrir um bocado: acho que o teu prolongado
silêncio deve ser interpretado como umha consequência da
melancolia e do cansaço, e que é mesmo preciso fazer-te sorrir.
Querida Tania, deves escrever-me, porque só de ti recebo
cartas: quando me falta a tua correspondência assim, durante
tanto tempo, tenho a impressom de que estou ainda mais isolado,
que todas as minhas relaçons com o mundo se rompê-
rom. Beijo-te, com afeto
Antonio
•
73
(Carta 9)
15/1/1927
Minha queridíssima Iulca,
quero descrever-che a minha vida quotidiana nas suas linhas
mais essenciais, para que podas acompanhá-la e captes, de
tanto em tanto, algum traço. Como sabes, porque já cho deveu
escrever Tania, vivo com outros quatro amigos, entre eles
o engenheiro Bordiga, de Nápoles, de quem se calhar conheces
o nome. Os outros três som: um ex deputado reformista
de Perusa, o advogado Sbaraglini e dous amigos do Abruzzo.
Agora durmo num quarto com um destes abruzzeses, Piero
Ventura; antes dormíamos três, porque estava com nós o ex
deputado maximalista de Verona Paolo Conca, um exemplo
simpático de operário, que à noite nom nos deixava dormir,
porque o atormentava a lembrança da mulher; suspirava, ressoprava,
acendia logo a luz e fumava uns cigarros malcheirentos.
Afinal, a mulher véu também para Ustica para se reunir
com o marido, e Conca deixou-nos. Portanto, somos cinco,
divididos em três dormitórios (toda a casa): temos ao nosso
dispor um lindo terraço, desde o qual admiramos o mar infinito
durante o dia e o magnífico céu durante a noite. O céu,
livre de qualquer fume urbano, permite desfrutar destas maravilhas
com o máximo de intensidade. As cores da água marinha
e do firmamento som verdadeiramente extraordinárias,
pola variedade e a profundidade: vim arcos-da-velha únicos
no seu género.
De manhá, como de costume, som o primeiro em erguerme;
o engenheiro Bordiga afirma que o meu passo tem a essa
hora caraterísticas especiais; é o passo do homem que nom
tomou ainda o café e que o aguarda com umha certa impaciência.
Fago eu mesmo o café, se nom consigo convencer
74
o Bordiga para que o faga, dadas as suas notáveis aptitudes
para a cozinha. A seguir, começa a nossa vida: vamos à escola,
como professores ou como alunos. Se for dia do serviço postal,
vamos para a marinha, aguardando com ánsia a chegada
do barco: se o correio nom chega por causa do mau tempo, é
um dia perdido e umha certa melancolia se estende por todos
os rostos. Ao meio-dia comemos: eu participo numha cantina
comunitária e justo hoje me toca fazer de camareiro e de
ajudante de cozinheiro: nom sei ainda se terei de pelar as batatas,
preparar as lentilhas ou limpar a leituga antes de servir
a mesa. A minha estreia é aguardada com muita curiosidade:
bastantes amigos queriam substituir-me no serviço, mas fiquei
inamovível na minha vontade de cumprir com a minha
parte. De tarde temos de voltar para os nossos quartos às oito.
Por vezes, há visitas de vigiláncia para comprovar se estamos
verdadeiramente em casa. A diferença dos presos comuns, nós
nom estamos fechados por fora. Outra diferença consiste em
que a nossa saída livre dura até as oito, e nom apenas até as 5;
poderíamos obter licenças vespertinas se fossem necessárias
por algum motivo. Na casa, jogamos cartas à noite. Nom tinha
jogado nunca até agora; Bordiga afirma que tenho madeira
para chegar a ser um bom jogador científico de scopone. Reconstruim
já umha certa biblioteca e podo ler e estudar. Os
livros e os jornais que me chegam causárom umha certa luita
entre eu e Bordiga, quem sustenta sem razom que eu som mui
desordenado; a traiçom, ele leva a desordem às minhas cousas,
com a excusa da simetria e da arquitetura: realmente, já
nom dou encontrado nada na simétrica trapalhada que me
organizou.
Queridíssima Iulca: escreve-me muito sobre a tua vida e
mais sobre as crianças. Assim que podas, manda-me a fotografia
de Giuliano. Delka fijo mais progressos? Cresceu-lhe
75
mais o cabelo? A doença tivo algumha consequência? Escreve-me
muito sobre Giuliano. E Genia sanou? Um abraço mui
forte
Antonio
•
(Carta 10)
Milám, 12 de fevereiro de 1927
Queridíssimas17,
escrevo para duas a um tempo para utilizar melhor as poucas
cartas que me permitem escrever. Saim de Ustica na manhá
do 20, repentinamente18: quase que nom tivem tempo de ditar
umha breve carta e de enviar um telegrama para avisarvos.
Pensava passar por Roma de caminho; porém, polo que
parece foi umha interpretaçom errada do telegrama em que
se comunicava o meu arresto, fum trasladado a Milám por
transferência ordinária, e nom extraordinária: assim, andei
de viagem dezanove dias. Em Isernina conseguim enviar um
telegrama em que vos avisava da mudança no itinerário. Esta
viagem foi para mim um triplo ou quádruplo desafio, quer do
ponto de vista moral quer, e especialmente, do físico. Nom
quero descrevê-lo ainda polo miúdo, para nom assustar-vos e
por nom dar-vos a impressom de estar feito um farrapo. Nes-
17 Tania e Giulia.
18 Depois de sentenciar o desterro, o juiz Enrico Macis do Tribunal Militar
de Milám, sob a encomenda do Tribunal Especial, reabrira a instruçom relativa
a G. e a 14 de janeiro de 1927 pronunciou o mandado de arresto. Após deixar
Ustica a 20 de janeiro em «transporte ordinário», G. chegou aos cárceres judiciários
de Milám na tarde de dia 7 de fevereiro de 1927. Nos dias 9 de fevereiro,
20 de março e 2 de junho foi interrogado polo juiz Macis.
76
tes dezanove dias «morei» nos seguintes cárceres: Palermo,
Nápoles, Caianello, Isernia, Sulmona, Castellamare Adriatico,
Ancona, Bolónia; na noite do dia 7 cheguei a Milám. Em
Cajanello e em Castellamare nom há cárceres; «dormim» nas
cámaras de segurança do Quartel dos Carabineiros; fôrom as
duas noites mais cativas que tenho passado, talvez em toda a
minha vida. Em Castellamare apanhei um estupendo resfriado,
que neste momento já quase que me passou.
Nas travessias Ustica-Palermo e Palermo-Nápoles o estado
do mar era péssimo; porém, nom sofrim. A travessia
Palermo-Nápoles merece ser descrita: farei-no noutra carta,
quando tiver repensado todos os detalhes e refrescado a
memória. A viagem foi em geral para mim como um filme
longuíssimo: conhecim umha infinidade de tipos, dos mais
vulgares e nojentos, aos mais curiosos e ricos em caraterísticas
de interesse. Entendim o difícil que é compreender a
partir de sinais exteriores a verdadeira natureza das pessoas;
por exemplo, em Ancona, um velhinho bonacheirom,
com face de honesto homem de províncias, perguntou-me
se lhe cedia a minha sopa, que eu decidira nom comer; figem-no
com prazer, impressionado pola serenidade dos seus
olhos e pola modéstia desenvolta do seu proceder; avisá-
rom-me mais tarde de que era um cabrom nojento: violara
a filha.
Quero-vos dar umha visom de conjunto da viagem. Imaginai
que de Palermo a Milám se arrasta um imenso verme,
que se contrai e se descontrai, que se articula e se desarticula
sem parar, deixando em cada cárcere umha parte dos seus
aneis, substituindo-os por uns novos, agitando-se à direita
e à esquerda das formaçons e incorporando as extraçons no
regresso. Este verme tem covis em cada cárcere, que se chamam
«tránsitos», onde ele fica entre dous e oito dias, e que
77
acumulam, fazendo com que calhem, a imundície e a miséria
de geraçons.
Chegamos, cansos e sujos, com os pulsos doridos polas
longas horas de ferros, com a barba comprida, com o cabelo
em desordem, com os olhos encovados e cintilantes polo
ánimo exaltado e pola insónia; deitamo-nos no chao de terra
sobre enxergons que tenhem quem sabe que antiguidade,
vestidos, para nom termos contato com a porcaria, tapandonos
o rostro e as maos com os mesmos panos, cobrindo-nos
com mantas insuficientes, polo menos para nom congelar-nos.
Partimos novamente, ainda mais sujos e cansos, até o novo
tránsito, com os pulsos ainda mais lívidos polo frio dos ferros
e o peso das cadeias e polo cansaço de transportar, assim arrumados,
as nossas bagagens: mas, paciência, agora tudo passou
e já descansei.
Estou aqui, numha boa cela, aquecida polo sol, coberto
por umha camisola de lá que comprei assim que pudem; finalmente
tornei a friagem dos meus velhos ossos.
Descreverei-vos noutras cartas alguns dos meus companheiros
de cadeia e de viagem: tenho um feixe deles avondo
interessante. Reparei nomeadamente num réu condenado a
cadeia perpétua, que encontrei em Nápoles, quando estava no
pátio; soubem unicamente o seu nome, Arturo, e estes detalhes:
que tem 46 anos, que cumpriu já 22 anos de condena, dos
quais 10 de segregaçom (isolado) e que é sapateiro remendom.
É um homem lindo, esbelto, de traços finos e elegantes;
fala com umha precisom, umha clareza e umha segurança de
pasmar. Nom tem umha grande cultura, embora cite amiúde
Nietzsche: dizia «Dies iràë», redobrando a «a-e». Vim-no em
Nápoles, sereno, sorridente, tranquilo; tinha como umha tinta
de pergaminho nas tempas e nas orelhas, quer dizer, a pele
amarelenta, como curtida. Partiu de Nápoles dous dias antes
78
do que eu. Vim-no novamente em Ancona, ao chegarmos à
estaçom, sob a chuva: obrigaram-no a fazer a linha Campobasso-Foggia,
acho, e nom a de Cajanello-Castellamare, porque
sendo um condenado a cadeia perpétua teria tentado a
fuga nestes tránsitos, ainda a risco de um disparo de espingarda
por parte dos guardas. Cumprimentou-me, ao reconhecerme
ao instante. Vim-no novamente no Registro do cárcere de
Ancona: deixaram-lhe as cadeias, porque devia caminhar até a
cela, ao ter chegado ao seu destino, e devia atravessar uns pá-
tios, embora internos. Mudara completamente desde Nápoles:
na verdade, lembrou-me o Farinata: o rosto duro, anguloso, os
olhos pungentes e frios, o peito para fora, o corpo todo teso,
como umha mola pronta a saltar: apertou-me a mao duas ou
três vezes e desapareceu, engolido pola prisom.
Basta. Vede, laretei como umha lercha. Para já, sabede
que estou bem, que nom preciso nada, que estou tranquilo
e que aguardo notícias vossas e das crianças. Lembra-se Delio
de mim algumha vez? Tendes de enviar-me a fotografia de
Giuliano.
Um abraço tenro para todos.
Antonio
•
(Carta 11)
19/II/1927
Queridíssima Tania,
desde há um mês e dez dias nom recebo notícias e nom encontro
explicaçons. Como já che escrevim umha semana atrás,
ao partir de Ustica, o barco nom chegava desde havia quase
dez dias: no barco que me levou a Palermo deviam ter chega-
79
do a Ustica polo menos um par de cartas tuas, que tinham de
ter encaminhado para Milám; porém, na correspondência que
recebim aqui, de volta à ilha, ainda nom encontrei nada teu.
Queridíssima, se se tratasse de algumha cousa que depende
de ti e nom já (como é possível e provável) de algum obstá-
culo administrativo, deves evitar inquietar-me assim durante
tanto tempo: isolado como estou, qualquer novidade e qualquer
interrupçom da normalidade levam-me a pensamentos
atormentados e penosos. As tuas últimas cartas, recebidas em
Ustica, eram verdadeiramente um pouco preocupantes; que
som essas preocupaçons sobre a minha saúde, que chegam até
fazer-che estar mal fisicamente? Asseguro-che que sempre estivem
bastante bem e que tenho em mim energias físicas que
nom podem esgotar-se facilmente, apesar das aparências de
fragilidade. Achas que nom quer dizer nada que tivesse levado
sempre umha vida extremamente sóbria e rigorosa? Reparo
agora no que significa nom ter tido nunca doenças de gravidade
e nom ter inferido ao organismo nengumha ferida fatal;
podo cansar-me terrivelmente, é verdade; mas um pouco de
repouso e de alimento conseguem que recupere rapidamente
a normalidade. Em resumo, nom sei o que escrever para conseguir
que estejas calma e sá: tenho que recorrer às ameaças?
Poderia nom escrever-che mais, sabes?, e fazer com que sintas
também tu o que significa a completa falta de notícias.
Imagino-te séria e sombria, sem um sorriso, nem sequer
fugidio. Quereria fazer de algumha maneira que te alegrasses
outra vez. Contarei-che pequenas histórias; o que achas? Por
exemplo, quero contar-che algo, a modo de entremês na descriçom
da minha viagem neste mundo tam grande e terrível,
sobre mim mesmo e a minha fama, mui engraçado. Eu nom
som conhecido fora de um círculo mui restrito; por isso, o
meu nome é deturpado dos jeitos mais inverosímis: Gramas-
80
ci, Granusci, Grámisci, Granísci, Gramásci, até Garamáscon,
com todos os graos intermédios mais estranhos. Em Palermo,
durante certa espera para o controlo das bagagens, estivem
num depósito com um grupo de operários turineses que se
dirigiam para o desterro; junto a eles estava um tipo formidável
de anarquista ultra-individualista, conhecido com o
sobrenome do «Único19», dos que se negam a confiar em ninguém,
mas principalmente na polícia e nas autoridades em
geral; a sua identificaçom: «som o Único e basta», eis a sua
resposta. Na multitude que aguardava, o Único reconheceu
entre os delinquentes comuns (mafiosos) um outro arquétipo,
siciliano (o Único devia ser napolitano ou de mais abaixo), detido
por motivos vários, entre o político e o comum, e passou
às apresentaçons. Apresentou-me: o outro fitou-me devagar
e perguntou enseguida: «Gramsci, Antonio?» Sim, Antonio!
— respondim. «Nom pode ser, replicou, porque Antonio Gramsci
tem que ser um gigante e nom um homem tam pequeno».
Nom dixo mais nada, retirou-se a um cantinho, sentou sobre
um assento indescritível e permaneceu, como Mário sobre as
ruínas de Cartago, a meditar sobre as suas ilusons perdidas.
Evitou cuidadosamente falar mais comigo durante o tempo
em que ainda permanecimos na mesma sala e nom se despediu
de mim quando nos separárom.
Há um outro episódio parecido que me aconteceu mais
tarde, mas que em minha opiniom é ainda mais interessante
e complexo. Estávamos para partir; os guardas das escolta
pugeram-nos já os ferros e as cadeias; fora amarrado de umha
maneira nova e mui desconfortável, já que os ferros me apertavam
os pulsos de forma rígida, o osso do pulso estava fora
19 Do título do livro do filósofo anarquista alemám Max Stirner, L’Unico e la
sua proprietà, publicado na Itália em 1902.
81
do ferro e batia contra ele de umha maneira dolorosa. Entrou
o chefe da escolta, um primeiro-sargento gigantesco, que ao
fazer o reconto se parou no meu nome e perguntou-me se era
parente do «famoso deputado Gramsci». Respondim que esse
homem era eu próprio e fitou-me com um olhar compassivo,
murmurando algo incompreensível. Em todas as paragens
sentim que falava de mim, sempre qualificando-me como o
«famoso deputado», nos grupos que se formavam em volta do
vagom celular (devo acrescentar que mandou que me colocassem
os ferros de maneira suportável), a tal ponto que, visto o
vento que sopra, pensava, ainda por cima, podia receber umha
malheira de algum exaltado. Num determinado momento, o
primeiro-sargento, que viajava no segundo vagom celular,
passou àquele onde me encontrava eu e travou conversa. Era
um tipo extraordinariamente interessante e estranho, cheio
de «necessidades metafísicas», como diria Schopenhauer, mas
que conseguia satisfazê-las da maneira mais extravagante e desordenada
que se poda imaginar. Dixo-me que se imaginara
sempre a minha pessoa como «ciclópea» e que se desiludira
muito deste ponto de vista. Estava a ler um livro de M. Mariani,
o Equilibrio degli egoismi20, e acabava de ler havia pouco
um livro de um tal Paolo Gilles, de confutaçom do marxismo21.
Tivem bom cuidado de lhe dizer que o tal Gilles era um
20 A obra citada por G. é de 1924 e expom um confuso projeto de reforma
social. Mario Mariani (1884-1951) foi um escritor de certo relevo na primeira
pós-guerra, autor de relatos e romances de inspiraçom erótico-social.
21 Trata-se do Abozzo di umha filosofia della dignità umana [Esboço de umha
filosofia da dignidade humana], de Paul Gille, e nom Gilles, professor do Institut
de Hautes Études de Bruxelas. A obra foi publicada na França em 1924 e
a traduçom italiana é da editora Social é de 1926, como prefácio de Francesco
Merlino. A introduçom, «O sofisma anti-idealista de Marx», pp. 9-23, contém
de facto umha tentativa de refutaçom do marxismo.
82
anarquista francês sem qualquer educaçom científica ou de
outro tipo: gostava de escutá-lo falar com grande entusiasmo
de tantas ideias e noçons disparatadas e inconexas, como poderia
falar um autodidata inteligente, mas sem disciplina nem
método. Num determinado momento começou a chamar-me
de «mestre». Divertim-me muito, como podes imaginar. E assim
tivem a experiência da minha «fama». O que achas? Quase
acabei a carta. Queria descrever-che polo miúdo a minha
vida aqui. Farei-no esquematicamente. Acordo de manhá às
seis e meia, meia hora antes da diana. Preparo um café bem
quente (aqui em Milám está permitido o combustível «Meta»,
mui cómodo e útil): limpo a cela e asseio-me. Às sete e meia
recebo meio litro de leite ainda quente, que bebo imediatamente.
Às oito saio ao pátio, isto é, saio de passeio, que dura
duas horas. Levo um livro, passeio, leio, fumo algum cigarro.
Ao meio-dia recebo a comida de fora, assim como à noite recebo
a ceia: nom consigo comer tudo, embora coma mais do
que em Roma. Às sete da noite vou para a cama e leio até as
onze aproximadamente. Recebo durante o dia cinco jornais:
Il Corriere, La Stampa, Il Popolo d’Italia, Il Giornale d’Italia e
Il Secolo. Subscrevim-me à biblioteca, com dupla assinatura,
e tenho direito a oito livros por semana. Compro aliás algumha
revista e Il Sole, um jornal económico-financeiro de Milám.
De maneira que sempre estou a ler. Lim já as Viagens de
Nansen22 e outros livros dos quais che falarei noutra ocasiom.
Nom tivem mal-estares de importáncia, com a exceçom da
friagem dos primeiros dias. Escreve-me, queridíssima, e man-
22 Trata-se, mui provavelmente, da obra do cientista e explorador norueguês
Fridjof Nansen, La spedizione polare norveggese. Tra ghiacci e tenebre [«A expediçom
polar norueguesa. Entre gelos e trevas»], publicado em Roma entre
1893 e 1896.
83
da-me notícias de Giulia, de Delio, de Giuliano, de Genia e de
todos os demais: e notícias tuas. Um abraço
Antonio
A carta passada e mais esta nom estám franqueadas, porque
esquecim comprar a tempo os selos.
•
(Carta 12)
26 de fevereiro de 1927
Queridíssima mae,
Encontro-me em Milám desde dia 7 de fevereiro, nos cárceres
judiciários de San Vittore. Saim de Ustica a 20 de janeiro e
foi-me entregue aqui umha carta tua, sem data, mas que deve
ser dos primeiros dias de fevereiro. Nom deves preocupar-te
por umha mudança nas minhas condiçons; isso agrava só até
certo ponto o meu estado; trata-se apenas de um aumento das
maçadas e dos aborrecimentos, mais nada. Também nom quero
dizer-che polo miúdo em que consiste a acusaçom que se
me fai, pois nem eu próprio a dei compreendido até agora;
de algumha maneira, trata-se das habituais questons políticas,
polas quais já fora condenado a cinco anos de desterro em Ustica.
Fará falta paciência, e eu paciência tenho-a a toneladas, a
vagons, a casas (lembras como dizia Carlo quando era pequeno
e comia algum doce saboroso? «Quereria cem casas»; eu de
paciência tenho kentu domus e prus23).
23 Expressom sarda, «cem casas, e mais».
84
Ora, também tu terás que ter paciência e valor. Na tua
carta, porém, penso que te me mostras num estado de ánimo
bem diferente. Escreves que te sentes velha etc. Pois bem, estou
certo de que ainda és mui forte e resistente, apesar da tua
idade e das grandes penas e os grandes trabalhos polos que
tiveche que passar.
Corrias, corriazzu, lembras24? Estou certo que ainda nos
veremos todos juntos, filhos, netos e talvez, quem sabe, bisnetos,
e faremos umha comida grandíssima, com kulurzones
e pardulas e zippulas e pippias de zuccuru e figu sigada25 (nom
desses figos secos, porém, daquela famosa tia Maria de Tadasuni).
Achas que Delio gostará dos pirichittos e das pippias de
zuccuru? Acho que sim, e que também ele dirá que quer cem
casas delas; nom poderias crer quanto se parece com o Mario
e com o Carlo quando era umha criança, polo que eu lembro,
nomeadamente com o Carlo, à parte do nariz, que Carlo tinha
naquela época mais pequena.
Algumha vez penso em todas estas cousas e gosto de lembrar
os feitos e as cenas da infáncia: encontro nelas muitas
dores e muitos sofrimentos, é verdade, mas também algo alegre
e formoso. E depois estás sempre tu, querida mamae, e as
tuas maos sempre atarefadas por nós, para aliviar as nossas
mágoas e para tirar algum proveito de todas as cousas. Lembras
as que tramavas para arranjar um café bom, sem cevada
e outras porcarias do gênero? Olha: quando penso em todas
estas cousas, penso também que Edmea nom terá estas lem-
24 Trocadilho feito com o nome dos Corrias, parentes da mae de G., e coriazzu,
que em sardo significa «resistente», «duro como o coiro».
25 Kulurzones som ravioli, pasta fresca recheia de queijo; pardulas e zippulas
som doces típicos sardos. Figu sigada, e mais as pippias de zuccuru, som pastéis
em forma de boneca.
85
branças quando seja grande e que isso há de influenciar muito
o seu caráter, causando nela umha certa indolência e um
certo sentimentalismo, que nom som mui recomendáveis nos
tempos de ferro e de fogo em que vivemos. Dado que também
Edmea terá que abrir-se caminho por si própria, cumpre
pensar em fazê-la mais forte do ponto de vista moral, para
impedir que continue a crescer rodeada dos costumados elementos
da vida fossilizada do rural. Acho que vós tendes que
explicar-lhe, com muito tato, naturalmente (porque Nannaro
nom se ocupa demasiado dela e parece que a descuida),
devedes explicar-lhe como seu pai nom pode voltar hoje do
estrangeiro e como isto se deve ao facto de que Nannaro,
como eu e muitos outros, pensárom que as muitas Edmeas
que vivem neste mundo deviam ter umha infáncia melhor da
que nós passámos e melhor da que ela mesma passa. E devedes
dizer-lhe, sem voltas, que eu estou em prisom, igual que
seu pai está no estrangeiro. Devedes, certamente, ter em consideraçom
a sua idade e o seu caráter, evitando que a pobre
se entristeça demasiado, mas devedes dizer-lhe a verdade na
mesma, para que some dessa maneira recordaçons de fortale-
ça, de coragem e de resistência às magoas e às voltas que dá
a vida.
Queridíssima mae, nom deves preocupar-te por mim e
nom deves pensar que eu esteja mal. Na medida do possível,
estou bem. Tenho umha cela de pagamento, quer dizer, umha
cama bastante boa: tenho até um espelho para me remirar.
Recebo de umha cantina dous pratos por dia; de manhá tomo
meio litro de leite. Tenho ao meu dispor um pequeno aparelho
para requentar os alimentos e fazer-me um café. Leio os
jornais polo dia e oito livros por semana, além das revistas
ilustradas e humanísticas. Tenho cigarros «Macedonia». Em
resumo, do ponto de vista material, nom sofro nengumha fal-
86
ta destacável. Nom podo escrever o que me parece e recibo os
correios de maneira mui irregular, isso sim. Desde fai aproximadamente
um mês e meio nom tenho notícias de Giulia e
dos meus filhos. Por isso nom podo escrever-che nada sobre
eles. Porém, sei que do ponto de vista material estám bem, e
que a Delio e Giuliano nom lhes falta de nada.
A propósito, recebeche umha fotografia preciosa de Delio
que deviam ter-che enviado? Se a recebeche, escreve-me as
tuas impressons.
Queridíssima mai, prometo escrever-che polo menos
cada três semanas e ter-te contente; escreve-me também tu e
fai que me escrevam Carlo, Grazietta, Teresina, meu pai, Paolo
e também Edmea, quem, penso eu, deve ter feito progressos e
já deve saber juntar algumha letrinha; cada carta que recebo é
para mim um grande consolo e um bom entretenimento.
Um abraço com tenrura para todos; para ti, queridíssima
mae, o mais tenro abraço
Nino
O meu endereço é agora: Cárcere judiciário – Milám.
•
(Carta 13)
19/III/1927
Queridíssima Tania,
recebim esta semana dous postais teus; um de dia 9 e outro
de 11 de março: porém, nom recebim a carta que mencionas.
Achava que recebia a tua correspondência, encaminhada de
Ustica: na prática, chegou-me um pacote de livros da ilha e
o copista que mos entregou dixo-me que o pacote continha
87
também cartas sem abrir e postais que deviam passar ainda
pola seçom de revisom; espero recebê-las dentro de uns dias.
Agradeço-che as notícias que me mandas sobre Giulia e
as crianças; nom consigo escrever diretamente a Giulia, à espera
de receber algumha carta sua, também com muito atraso.
Imagino o seu estado de espírito, para além do físico, por todo
um conjunto de razons; essa doença deveu ser bem angustiosa.
Pobre Delio; da escarlatina à gripe, em tam pouco tempo!
Escreve tu à avó Lula26, e pede-lhe que me escreva umha longa
carta, em italiano ou em francês, como puder (de resto, tu podias
mandar-me só a traduçom), e que me descreva, com todo
detalhe, a vida das crianças. Convencim-me a mim mesmo de
que as avós sabem descrever as crianças e os seus movimentos
melhor do que as maes, de umha maneira real e concreta;
som mais objetivas, e depois tenhem a experiência de todo
um percurso vital; acho que a tenrura das avós é mais substanciosa
que a das maes (porém, Giulia nom deve ofender-se
e considerar-me pior do que som!).
Nom sei sugerir-che mesmo nada para Giuliano; neste
terreno já me equivoquei umha vez com Delio. Se calhar, eu
próprio poderia fabricar-lhe algumha cousa adequada, se pudesse
estar perto dele. Decide tu, à vontade, e escolhe algumha
cousa em meu nome. Fabriquei nestes dias umha bola com
papelom, que está acabando de secar; acho que che será impossível
enviar-lha a Delio; de resto, ainda nom dei pensado
como é que lhe vou poder dar o verniz, e sem ele desfará-se
facilmente por causa da humidade.
A minha vida decorre sempre igual de monótona. Mesmo
o estudo é bem mais difícil do que me parecera. Rece-
26 Diminutivo com o que Delio e Giuliano chamavam à sua avó materna,
com quem moravam.
88
bim algum libro e a verdade é que leio muito (mais de um
volume por dia, além dos jornais), mais nom é a isto a que
me refiro, senom que tento dizer outra cousa. Atormenta-me
esta ideia (esta é a condiçom própria dos presos, penso): seria
necessário fazer algumha cousa «für ewig»27, segundo umha
complexa conceçom de Goethe, que lembro tem atormentado
muito o nosso Pascoli. Em resumo, eu quereria, segundo um
plano pré-estabelecido, ocupar-me intensa e sistematicamente
nalgum tema que me absorvesse e centralizasse a minha vida
interior. Pensei até agora em quatro temas, e isto é já umha
indicaçom de que consigo concentrar-me, a saber: 1° umha
pesquisa sobre a formaçom do espírito público na Itália do
século passado; por outras palavras, umha pesquisa sobre os
intelectuais italianos, as suas origens, os seus agrupamentos
por correntes culturais, os seus diferentes modos de pensar,
etc., etc. Argumento sugestivo em sumo grau, e que eu naturalmente
somente poderei esboçar em grandes linhas, dada a
absoluta impossibilidade de ter à minha disposiçom a imensa
mole de material que seria necessária. Lembras o rapidíssimo
e mui superficial escrito meu sobre a Itália meridional e sobre
a importáncia de B. Croce?28. Pois bem, gostaria de desenvolver
amplamente a tese que esboçara na altura, de um ponto de
vista «desinteressado», für ewig. —2° Um estudo de lingüística
comparada! Nada menos. Mas que poderia ser mais «desin-
27 «Para a posteridade». No tocante a Pascoli, veja-se o poema «Per sempre»,
nos Canti di Castelvecchio.
28 Trata-se do ensaio, que ficou inacabado, Alcuni temi della quistione meridionale,
que G. escreveu em outubro de 1926, poucas semanas antes do seu
arresto. O manuscrito, que escapou aos registros da polícia, foi recuperado e
posto a salvo a começos de 1927 por Camilla Ravera, que o levou para a Suíça.
O ensaio foi publicado pola primeira vez na França, na revista do P.C.I., «Stato
operário», ano IV (1930), pág. 9 e ss.
89
teressado» e für ewig que isso? Seria questom, naturalmente,
de tratar apenas a parte metodológica e puramente teórica do
tema, que nom foi nunca tratada de umha maneira completa
e sistemática com o novo ponto de vista dos neolingüistas,
contrário ao dos neogramáticos. (Darei-che arrepios, querida
Tania, com esta carta minha!). Um dos maiores «remorsos»
intelectuais da minha vida é a mágoa profunda que causei ao
meu bom professor Bartoli29, da Universidade de Turim, que
estava convencido de que eu era o arcanjo destinado a derrotar
definitivamente os «neogramáticos», já que ele, da mesma
geraçom e atado por milhons de fios académicos a essa gentalha
de péssimos homens, nom queria ir, nos seus enunciados,
para além duns certos limites fixados polas conveniências e
pola deferência aos velhos monumentos funerários da erudi-
çom. —3° Um estudo sobre o teatro de Pirandello e sobre a
transformaçom do gosto teatral italiano que Pirandello representou
e que contribui para a sua configuraçom. Sabes que
eu, muito antes que Adriano Tilgher, descobrim e contribuim
para a popularizaçom do teatro de Pirandello? Escrevim sobre
Pirandello, desde 1915 até 1920, como para juntar um pequeno
volume de 200 páginas30 e na altura as minhas afirmaçons
eram originais e sem precedentes: o Pirandello era aturado
por cortesia ou era abertamente ridicularizado. —4° Um ensaio
sobre romances de folhetim e o gosto popular em literatura.
A ideia véu-me lendo a notícia da morte de Serafino Renzi,
29 Matteo Giulio Bartoli (1873-1946), professor de Linguística na Universidade
de Turim.
30 Nas crônicas teatrales escritas para a ediçom turinesa do Avanti! entre 1916
e 1920. [Há ediçom galega publicada pola Universidade da Corunha e traduzida
por Xesús González Gómez]. Para os estudos de Tilgher sobre o teatro de
Piradello, cfr. os recolhidos nos volumes Voci del tempo, Librerie di Scienze e
Lettere, Roma 1921, e Studi sul teatro contemporaneo, ibi., 1923.
90
diretor de dramas populares, reflexo teatral dos romances de
folhetim, ao lembrar quanto me divertira as vezes que fora vê-
lo, porque a representaçom era dupla: a emoçom, as paixons
desencadeadas, a intervençom do público popular nom era,
decerto, a representaçom menos interessante.
Que che parece isto todo? No fundo, para quem observe
com atençom, entre estes quatro temas existe umha homogeneidade:
a alma criativa do povo, nas suas diferentes fases e
graus de desenvolvimento, está na sua base em igual medida.
Escreve-me as tuas impressons; confio muito no teu bom senso
e no fundamento dos teus juízos. Aborrecim-te?.
Sabes?, para mim escrever substitui as conversas: quando
che escrevo, acredito que estou a falar-te de verdade; só que
tudo se reduz a um monólogo, porque as tuas cartas, ou nom
me chegam, ou nom correspondem com a conversa iniciada.
Por isso, escreve-me cartas, com mais vagar, além dos postais;
eu escreverei-che umha carta cada sábado (podo escrever
duas por semana) e será um desabafo. Nom retomo a narra-
çom das minhas aventuras e impressons da viagem, nom sei
se che interessam; é certo que tenhem um valor pessoal para
mim, em quanto que estám ligadas a determinados estados de
ánimo e também a determinados sofrimentos; para fazê-las
interessantes para os demais seria necessário, se calhar, expô-
las em forma literária; mas eu tenho que escrever de golpe, no
pouco tempo em que me deixam o tinteiro e a caneta.
De resto, a plantinha do limoeiro continua a crescer?
Nom me digeche nada mais. E a dona da minha casa, como
está? Ou é que morreu? Sempre me esqueço de perguntarcho.
A primeiros de janeiro recebim em Ustica umha carta
do senhor Passarge, que estava desesperado e achava próxima
a morte da mulher; depois nom soubem mais nada. Pobre
senhora, temo que a cena do meu arresto contribuíra para
91
acelerar o seu mal, já que me queria bem e estava tam pálida
quando me levárom!.
Um abraço, querida, quere-me e escreve-me.
Antonio
•
(Carta 14)
26 de março de 1927
Queridíssima Teresina,
há só poucos dias entregárom-me a carta que me enviaras a
Ustica e que continha a fotografia de Franco. Pudem ver assim,
finalmente, o teu pequeninho; dou-che todos os meus
parabéns. Mandarás-me também —nom é?— a fotografia de
Mimí, e assim estarei mesmo contente. Impressionou-me muito
que Franco, polo menos na fotografia, se pareça pouquíssimo
com a nossa família: deve parecer-se com Paolo e a sua estirpe
campidanesa, e se calhar até maurreddina31: e Mimí com
quem se parece? Deves escrever-me com mais vagar sobre os
teus filhos, se tiveres tempo, ou polo menos fai que me escreva
Carlo ou Grazietta. Franco parece-me mui esperto e inteligente:
acho que já fala bem. Em que língua fala? Espero que o deixedes
falar em sardo e que nom o incomodedes neste sentido.
Foi um erro, para mim, nom ter deixado que Edmea, desde
bem pequena, falasse em sardo com liberdade. Isso prejudicou
a sua formaçom intelectual e pujo umha camisa de força à
sua fantasia. Nom deves cometer este erro com os teus filhos.
O sardo nom é um dialeto, mas umha língua de seu, embora
31 Maurreddu: chama-se assim em sardo a quem vive na zona de Oristano e
Cagliari, e em geral nas regions meridionais de Sardenha.
92
nom tenha umha grande literatura, e é bom que as crianças
aprendam mais línguas, se for possível. À parte que o italiano
que lhe ides ensinar, será umha língua pobre, eivada, feita
dessas poucas frases e palavras das vossas conversaçons com
ele, puramente infantil; ele nom terá contato com o ambiente
geral e acabará por aprender duas gírias e nengumha língua:
umha gíria italiana para a comunicaçom oficial convosco e
umha gíria sarda, aprendida aos poucos, para falar com as outras
crianças e com as pessoas que encontre pola rua ou na
praça. Recomendo-te, mesmo de coraçom, que nom cometas
um erro semelhante, que deixes os teus filhos mamarem todo
o sardismo que quigerem e que se desenvolvam de maneira
espontánea no ambiente natural em que nascêrom: isso nom
vai ser um obstáculo para o seu porvir, antes polo contrário.
Delio e Giuliano nom estivérom bem nestes últimos tempos:
tivérom a gripe; escrevem-me que já se repugérom e que
estám bem. Repara em Delio, por exemplo: começou a falar
a língua da mae, como era natural e necessário, mas rapidamente
foi aprendendo também o italiano, e cantava ainda can-
çons em francês, sem que por isso confundisse ou misturasse
as palavras de umha ou de outra língua. Eu queria ensinarlhe
também a cantar: «Lassa sa figu, puzone»32, mas as suas
tias, principalmente, opugérom-se com energia. Divertim-me
muito com Delio no passado agosto: estivemos juntos umha
semana no Trafoi, no Alto Adige, numha choupana de camponeses
alemáns. Delio fazia entom dous anos justos, mas
estava já mui desenvolvido intelectualmente. Cantava com
muito vigor umha cançom: «Abaixo os frades, abaixo os padres»
e depois cantava em italiano: «Il mio sole sta fronte a
32 «Deixa o figo, ó pássaro», em sardo.
93
te» e umha cançom francesa que tinha a ver com um moinho.
Convertera-se num entusiasta da procura de amorodos nos
bosques e sempre queria correr atrás dos animais. O seu amor
polos os animais aproveitava-se de duas maneiras: na música,
na medida em que era capaz de reproduzir no piano-forte a
gama musical segundo as vozes dos animais, desde o tom de
barítono do urso até o agudo do pintinho, e no desenho. Cada
dia, quando ia onda ele, em Roma, havia que repetir toda a
série: primeiro havia que colocar o relógio de parede sobre a
mesa e fazer com que figesse todos os movimentos possíveis;
depois havia que escrever umha carta à avó materna com o
debuxo dos animais que o impressionaram durante o dia; mais
tarde íamos ao piano e tocava a sua música animalesca; depois
jogávamos a diferentes cousas.
Querida Teresina, mencionache na tua carta que a primeira
carta que vos enviei desde Roma estava cheia de desá-
nimo. Nom acho ter estado nunca desanimado como pensas.
Aquela carta escrevim-na num momento verdadeiramente difícil,
relativamente; o dia anterior comunicaram-me a medida
de cinco anos de desterro e dixeram-me que em poucos dias
teria que partir para Giubaland, na Somália. Com efeito, naquela
noite pensei bastante nas minhas possibilidades físicas
e de resistência, que na altura nom pudera medir ainda e considerava
que eram poucas; é possível que na carta houvesse
um reflexo daquele estado de ánimo. Seja como for, deves crer
que, embora pudesse sentir naquel momento, como tu dis, um
pouco de desánimo, passou-se rapidamente e nom se repetiu
mais. Vejo tudo com muita frieza e tranquilidade e, mesmo
sem fazer-me ilusons pueris, estou firmemente convencido de
que o meu destino nom é apodrecer na cadeia. Tu e os demais
tendes que procurar que mamae esteja alegre (recebim
umha carta sua que nom sei como responder) e tendes que
94
assegurar-lhe que a minha honradez e a minha integridade
nom estám de nengum modo em questom: estou no cárcere
por razons políticas, nom por razons de honradez. Acho mesmo
que acontece o contrário: se nom me importasse com a
minha honradez, a minha integridade, a minha dignidade, se,
por outras palavras, fosse capaz de ter o que se chama umha
«crise de consciência» e de mudar de opiniom, nom teria sido
detido nem teria ido para Ustica, isso para começar. Sobre isto
devedes convencer a mamae; é mui importante para mim. Escreve-me
e fai que todos me escrevam: já nom vim sequer a
assinatura de Grazietta; como está?.
Um abraço para Paolo, com afeto; muitos beijos para ti e
os teus filhos
Nino
•
(Carta 15)
4 de abril de 1927
Querida, querida Tania,
a semana passada recebim dous postais teus (de 19 e de 22
de março) e a carta do 26. Sinto muito ter-te magoado; acho
que tampouco tu entendeche bem o meu estado de ánimo,
porque nom me expressei bem e sinto que entre nós podam
criar-se equívocos. Asseguro-che que nunca, mesmo nunca,
me entrárom sequer dúvidas de que pudesses esquecer-me
ou pudesses querer-me menos; com certeza, se tivesse pensado,
mesmo de longe, umha cousa assim nom che teria escrito
mais; esse foi sempre o meu caráter e por isso rompim muitas
velhas amizades no passado. Só em pessoa poderia explicarche
a razom do nervosismo que se apoderou de mim, depois
de dous messes sem notícias; nem tento sequer fazê-lo por
95
carta, para nom cair noutros equívocos igualmente dolorosos.
Agora tudo passou e nom quero nem voltar pensar nisso. Desde
há alguns dias mudei de cela e de rádio (o cárcere está dividido
em rádios) como indica também o cabeçalho da carta;
antes estava no 1º raio, cela 13; agora estou no 2º rádio, cela 22.
A minha situaçom carcerária, por assim dizer, parece que melhorou.
A minha vida decorre, contudo, mais ou menos como
antes. Quero descrevê-la para ti um pouco polo miúdo; assim
poderás imaginar cada dia o que fago: a cela é ampla como um
quartinho de estudante; a olho, calculo três metros por quatro
e meio e três e meio de altura. A janela dá ao pátio onde tomamos
o ar: nom é umha janela corrente, como é natural; é umha
das chamadas «boca de lobo», com grades no interior; podese
ver somente um pedaço de céu, nom se pode olhar para o
pátio ou para os lados. A disposiçom desta cela é pior que a da
anterior, que estava orientada a sul-sudoeste (o sol via-se contra
as dez, e às duas ocupava o centro da cela, com umha raiola
de polo menos 60 cm.); na cela atual, que deve estar orientada
a sudoeste-oeste, o sol vê-se contra as duas e permanece
na cela até tarde, mas com umha faixa de 25 cm. Nesta esta-
çom, mais quente, talvez seja melhor assim. De resto: a cela
atual está situada sobre a oficina mecânica do cárcere e ouvese
o ruído das máquinas; e porém já me habituarei. A cela é
mui simples e mui completa a um tempo. Tenho o catre contra
a parede, com dous colchons (um de lá): cambia-se a roupa
branca cada quinze dias aproximadamente. Tenho umha
mesinha e umha espécie de armário-cómoda, um espelho,
umha bacia e umha jarra de ferro esmaltado. Possuo muitos
objetos de alumínio comprados na seçom que a Rinascente33
33 A Rinascente era (e continua a ser) uns grandes armazéns com sucursais
em várias cidades italianas e ao que parece também no cárcere (N. do T.).
96
organizou no cárcere. Possuo alguns livros de meu; cada semana
recebo para ler oito livros da biblioteca do cárcere (dupla
assinatura). Para que te fagas umha ideia, fago-che a listagem
desta semana, que contudo é excecional, polo relativo
valor dos livros que me tocárom:
1° Pietro Colletta, Storia del Reame di Napoli (ótimo);
2° V. Alfieri, Autobiografia; 3° Molière, Commedie scelte, traduzidas
polo senhor Moretti (umha traduçom ridícula); 4°
Carducci, 2 v. das obras completas (bem medíocre, entre os
piores de Carducci); 5° Artur Lévy, Napoleone intimo (curioso,
apologia de Napoleom como «homem moral»); 6° Gina
Lombroso, Nell’America meridionale (bastante medíocre); 7°
Harnack, L’essenza del Cristianesimo; Virgilio Brocchi, Il destino
in pugno, romance (pom medo); Salvator Gotta, La donna
mia (ainda bem que é sua, porque é bem aborrecida).
De manhá acordo às seis e meia, às sete tocam diana: café,
asseio, limpeza da cela; tomo meio litro de leite e como umha
sandes; por volta das oito saimos ao pátio durante duas horas.
Passeio, estudo a gramática alemá, leio a Signorina contadina
de Puškin e aprendo de cor umha vintena de linhas do texto.
Compro Il Sole, jornal da indústria e o comércio, e leio algumha
notícia económica (lim-me todas os relatórios anuais das
sociedades anónimas); às terças compro Il Corriere dei Piccoli,
que me diverte; às quintas o Domenica del Corriere; às sextas,
o Guerin Meschino, supostamente humorístico. Depois do pá-
tio, o café; recibo três jornais, Corriere, Popolo d’Italia, Secolo,
que leio (agora o Secolo sai à tarde e nom o vou comprar mais,
porque já nom vale para nada); o jantar chega a distintas horas,
das doze às três; aqueço a sopa (era isso ou massa), como
um bocado de carne (desde que nom seja de boi, porque ainda
nom consigo comer carne de boi), um pamzinho, um peda-
ço de queijo —nom gosto da fruta— e um quartel de litro de
97
vinho. Leio um livro, passeio, reflito sobre muitas cousas. Às
quatro-quatro e meia recibo outros dous jornais, a Stampa e o
Giornale d’Italia. Às sete ceio (a ceia chega às seis), sopa, dous
ovos crus, um quartel de litro de vinho; o queixo nom o dou
comido. Às sete e meia toca a silêncio; vou para a cama e leio
livros até as onze-doze. Desde há dous dias, contra as 9 bebo
umha xícara de chá de macela. (Continuarei no próximo nú-
mero, porque quero escrever-che sobre outras cousas):
1° Nom me fai falta roupa branca, etc. Já tenho suficiente e
nom saberia onde meter outros objetos. Os sapatos que tenho
som ótimos; tenho também os chinelos. Para já, o uniforme
vai bem como uniforme carcerário. Tenho um abrigo que me
ajudou nos messes frios e que agora nom me vale para nada.
Tenho todas as tuas colheres e as colheres de café, que me
prestárom muito (mesmo sem cabo). Tenho seis ou sete nacos
de sabom, escovas, escova de dentes, peites, etc, etc. Verdadeiramente,
nom me fai falta nada essencial. A tua chegada aqui,
poder-te ver, seria umha grandíssima cousa para mim, bem o
podes crer!
No entanto, cumpre saber, em primeiro lugar, se vou ficar
aqui; em segundo lugar, é preciso termos a certeza de que che
vam dar a licença para a conversa. Deves lembrar que do ponto
de vista jurídico nós nom somos parentes, porque o casal
nom foi registado na Itália; do ponto de vista jurídico, eu som
solteiro e tu nom podes demonstrar que és minha cunhada.
Escrevo-che isto porque seria terrível para mim se vinhesses
e depois nom pudesses ver-me. Porém, digo-che que nom é
impossível termos a conversa; sei que alguns amigos meus tivérom
a conversa com as suas companheiras, sem serem jurí-
dicamente as suas mulheres; por que entom havia de ser impossível
para as cunhadas? Cumpre falar com um advogado:
em Milám seria preciso que te dirigisses ao Advogado Arys
98
(Via Unione 1) quem (como escreveu Bordiga desde Ustica)
se interessou por mim. Querida Tania, como me alegraria verte;
mas nom deves escrever sobre o tema, se nom for certa a
possibilidade de termos a conversa; de outra maneira sofreria
demasiado a desilusom. Um abraço
Antonio
Escuita, querida, para a correspondência, fagamos assim: eu
escrevo-che umha carta cada segunda-feira (neste rádio escreve-se
às segundas); tu escreve-me umha carta cada semana
e mais dous postais, também ilustrados, e manda-me as cartas
de Giulia. Sabes? a ideia da censura epistolar arrebata-me outra
vez a espontaneidade, como nos primeiros dias em Ustica.
Espero converter-me num «sem-vergonha» como antes, mas
ainda nom o consigo. Escreve a Giulia que penso muito nela
e nas crianças, mas que nom consigo escrever, nom dou; escreveria
como quem trabalha num escritório e é umha cousa
que dá arrepios.
•
CARTA 16
11 de abril de 1927
Queridíssima Tania,
recebim os teus postais de 31 de março e de 3 de abril. Agrade-
ço-che as novas que mandas. Espero a tua chegada a Milám,
mesmo se —devo confesá-lo— nom quero contar demasiado
com ela. Pensei que nom seria mui agradável continuar a
descriçom, iniciada na anterior carta, da minha vida atual. É
melhor que che escreva de cada vez o que me anda na cabeça,
sem um plano pré-estabelecido. Escrever converteu-se para
mim num tormento físico, porque me dam umhas canetinhas
horríveis, que riscam o papel e exigem umha atençom obsessiva
à parte mecánica da escrita. Pensava que poderia obter o
uso permanente da caneta-tinteiro e propugera-me redigir os
trabalhos que che mencionara; porém, nom obtivem a licença
e anojaria-me insistir. Por isso escrevo apenas nas duas horas
e meia ou três em que se despacha a correspondência semanal
(duas cartas); naturalmente, nom podo tomar apontamentos,
isto é, na realidade nom podo estudar com ordem e com proveito.
Leio à custo. Porém, o tempo passa mui rapidamente,
mais do que pensara. Decorrêrom cinco messes do dia do arresto
(8 de novembro) e dous messes do dia em que cheguei a
Milám. Nom parece verdade que tenha decorrido tanto tempo.
Porém, é preciso entender que nestes cinco messes as vim de
todas as cores e experimentei as impressons mais estranhas e
as mais excecionais da minha vida: Roma: de 8 de novembro
até 25 de novembro: isolamento absoluto e rigoroso. 25 de novembro:
Nápoles, em companhia dos meus quatro companheiros
deputados até o 29 (três, e nom quatro, porque um deles34
34 Enrico Ferrari.
100
fora separado em Caserta para as Trémiti). Embarque para Palermo
e chegada a Palermo o 30. Oito dias em Palermo: 3 travessias
para Ustica sem sucesso a causa do mar bravo. Primeiro
contato com os detidos sicilianos da máfia: um mundo novo,
que apenas conhecia intelectualmente; verifico e comprovo as
minhas opinions ao respeito, e reconheço-as bastante exatas. O
7 de dezembro, chegada a Ustica. Conheço o mundo dos presos:
cousas fantásticas e inacreditáveis. Conheço a colónia dos
beduínos da Cirenaica, desterrados políticos: quadro oriental,
mui interessante. Vida de Ustica. A 20 de janeiro, parto novamente.
Quatro dias em Palermo. Travessia para Nápoles
com deliquentes comuns. Nápoles: conheço toda umha série
de tipos do maior interesse para mim, que do Sul só conhecia
fisicamente Sardenha. Em Nápoles, entre outras cousas, assisto
à cena de iniciaçom à camorra: conheço um condenado a
prisom perpétua (um certo Arturo) que me deixa umha impressom
indelével. Após quatro dias saio de Nápoles; paragem
em Cajanello, no quartel dos carabineiros; conheço os meus
companheiros de cadeia, que virám comigo até Bolónia. Dous
dias em Isernia, com estes tipos. Dous dias em Sulmona. Umha
noite em Castellamare Adriatico, no quartel dos carabineiros.
Ainda: dous dias com aproximadamente 60 detidos. Organizam-se
festas na minha honra; os romanos improvisam um recital
bem bonito, Pascarella35 e bosquejos populares do mundo
do crime romano. Pulheses, calabreses e sicilianos desenvolvem
umha exibiçom de esgrima com faca segundo as regras
dos Quatro Estados do mundo do crime meridional (o Estado
Siciliano, o Estado Calabrês, o Estado Pulhês, o Estado Napolitano):
Sicilianos contra Pulheses, Pulheses contra Calabreses.
35 Cesare Pascarella (1858-1940), poeta em romanesco («dialeto» de Roma).
Foi também pintor e tentou o género épico-lírico.
101
Os Sicilianos e os Calabreses nom competem entre si, porque
entre os dous estados os ódios som fortíssimos e incluso a exibiçom
acabaria sendo séria e cruenta. Os Pulheses som os mestres
de todos: esfaqueadores insuperáveis, com umha técnica
cheia de segredos e letal, desenvolvida por e para superar todas
as outras técnicas. Um velho pulhês, de sessenta e cinco anos,
mui respeitado, mas sem cargo «estatal», derrotou todos os
campeons dos outros «estados»; depois, como fim de festa, pelejou
com um outro pulhês, jovem, de bom corpo e com umha
surpreendente agilidade, alto cargo a quem todos obedeciam,
e durante meia hora desenvolvérom toda a técnica habitual em
todas as esgrimas conhecidas. Umha cena verdadeiramente
grandiosa e inesquecível, por tudo, polos atores e polos espetadores:
todo um mundo subterráneo, bem complexo, com
umha vida de seu, com sentimentos, com pontos de vista, com
um aquele de honra, com hierarquias férreas e formidáveis,
manifestava-se para mim. As armas eram simples: as colheres,
polidas contra a parede, de maneira que o cal marcava os
golpes no uniforme. Depois de Bolónia, dous dias, com outras
cenas; a seguir, Milám. Com certeza, estes cinco messes fôrom
movidos e ricos de impressons para um ou dous anos de ruminaçons.
Isto pode explicar-che como passo o tempo, quando
nom leio; penso novamente em todas estas cousas, analiso-as
capilarmente, embebo-me deste trabalho bizantino. De outra
parte, converte-se tudo em demasiado interessante, o que
acontece em volta minha e o que consigo compreender. Certo
é que me controlo continuamente, porque nom quero cair nas
monomanias que caraterizam a psicologia dos detidos; a isso
ajuda-me principalmente um certo trasgo irónico e cheio de
humor que me acompanha sempre. E tu que fás, em que pensas?
Quem che compra os romances de aventuras, agora que eu
nom estou? Sei que leche outra vez as maravilhosas histórias
102
de Corcoran e da sua gentil Lisotta36. Frequentas este ano as
aulas do Policlínico? O professor Baronia, é aquele que achou o
bacilo do sarampo37? Acompanhei as suas lamentáveis vicissitudes;
nom compreendim polos jornais se também o professor
Cirincione fora suspenso. Tudo isto está, polo menos numha
parte, ligado ao problema da máfia siciliana. É inacreditável
como os Sicilianos, desde o estrato mais baixo às cimas mais
altas, som solidários entre eles e como até os cientistas de valor
inegável se situam nas margens do Código Penal por este sentimento
de solidariedade. Estou convencido de que realmente os
sicilianos som um caso à parte; há maior semelhança entre um
calabrês e um piemontês que entre um calabrês e um siciliano.
As acusaçons que os meridionais em geral lançam contra os
Sicilianos som terríveis: acusam-nos até de canibalismo. Nom
teria crido nunca que existissem tais sentimentos populares.
Penso que faria falta ler muitos livros sobre a história dos últimos
séculos, nomeadamente sobre o período da separaçom de
Sicília e o Sul de Itália durante os reinados de José Bonaparte
e Joaquim Murat em Nápoles, para encontrar a origem de tais
sentimentos. Estou entusiasmado com o gorro; onde conseguiche
encontrá-lo? Penso que é o gorro de Orgosolo, vermelho e
azul, que eu nom conseguira encontrar. Nom poderei mandar
a bola de papelom e igualmente, nem tu vas poder mandar o
verniz: acho que é absolutamente impossível, sobretudo o ver-
36 Trata-se de Les merveilleuses aventures du capitain Corcoran (1867), o mais
célebre dos livros infantís do romancista e jornalista francês Alfred Assolant
(1827-1886). Lisotta, ou Louison, é um tigre fémia, companheira inseparável do
capitám Corcoran.
37 Giuseppe Caronia, catedrático da Universidade de Roma, fora suspendido
temporariamente nas suas funçons docentes devido a alguns incidentes acontecidos
com doentes da clínica da universidade. Cirincione (1863-1929), professor
de oftalmologia da Universidade de Roma.
103
niz, que pode ser considerado um veneno, conforme o regulamento,
e exigiria toda umha série de controlos mui complexos.
Ai o tés, olha; um outro objeto de análise mui interessante: o
regulamento carcerário e a psicologia que cresce em volta dele,
de umha parte, e em volta do contato com os presos, de outra,
entre o pessoal de vigiláncia. Eu achava que duas obras mestras
(e digo-o absolutamente a sério) concentravam a experiência
milenária da Humanidade no campo da organizaçom das massas:
o manual do cabo e o catecismo católico. Estou convencido
de que é preciso acrescentar, embora num campo muito mais
concreto e de caráter excecional, o regulamento carcerário, que
guarda verdadeiros tesouros de introspeçom psicológica.
Espero as cartas de Giulia: penso que depois de tê-las lido,
conseguirei escrever-lhe diretamente. Nom penses que isto é
umha cousa de crianças. Umha notícia importante: desde há
alguns dias como muito; porém, nom dou comido a verdura;
figem esforços denodados e já renunciei porque me revolve de
um jeito terrível.
Seja como for, nom consigo esquecer que ao melhor vés
e que talvez (ai de mim!) poderemos ver-nos novamente, embora
seja durante uns minutos. Um abraço
Antonio
•
104
(Carta 17)
18 de abril de 1927
Minha queridíssima Iulca,
escrevo novamente, depois de tanto tempo. Só poucos dias
atrás recebim duas cartas tuas: umha de 14 de fevereiro e outra
de 1 de março, e pensei muito em ti; figem até um inventário
de todas as minhas lembranças, e sabes que imagem me ficou
mais impressa? Umha das primeiras, de há muito tempo.
Lembras quando te foras do Bosque de Prata38, no fim do teu
mês de férias? Acompanhara-te até a beira da estrada principal
e ficara um bom pedaço a olhar-te, enquanto te afastavas.
Acabávamos de conhecer-nos, e contudo já che tinha feito
bastantes desprezos e figera-che também chorar; mofava-me
de ti com a assembleia dos mouchos e tu pugeras-me a pele
de galinha ao tocares Beethoven. Assim te vejo sempre, afastando-te
com passos breves, com o violino numha mao e na
outra o teu bolso de viagem, tam pitoresco.
Qual é agora o meu estado de ánimo? Escreverei-che mais
por extenso as próximas vezes (pedirei escrever umha carta
dupla) e procurarei descrever-che os aspetos positivos da minha
vida nestes messes (os aspetos negativos fôrom já esquecidos);
umha vida interessantíssima, como podes imaginar, polos
homens que tivem ao pé de mim e as cenas a que assistim.
O meu estado de ánimo geral está marcado pola mais grande
tranquilidade. Como podo resumi-lo? Lembras a viagem
de Nansen ao Pólo? E lembras como se levou a cabo? Como
38 Em russo Serebriany bor, um lugar das aforas de Moscovo, onde G. passara
um período de descanso no verao de 1922 e onde conheceu primeiro a Genia
Schucht, também internada ali, e depois a Giulia, que fora visitar sua irmá e dar
concertos para os doentes.
105
nom estou mui convencido de que o lembres, lembrarei-cho
eu. Nansen, depois de estudar as correntes marinhas e aéreas
do Oceano Árctico e tendo observado que nas praias de Gronelândia
se encontravam árvores e resíduos que deviam de
ser de origem asiática, pensou que poderia chegar ao Pólo, ou
polo menos perto do Pólo, deixando que os gelos transportassem
o seu barco. Assim, deixou-se aprisionar polos gelos
e durante três anos e meio o seu barco apenas se moveu na
medida em que se deslocavam, bem devagar, os gelos. O meu
estado de ánimo pode comparar-se com o dos marinheiros de
Nansen durante esta viagem fantástica, que sempre me impressionou
pola sua conceiçom, verdadeiramente épica.
Conseguim explicar-me? (como diriam os meus amigos
sicilianos de Ustica). Nom cho poderia explicar de umha maneira
mais breve e mais sintética. Portanto, nom te preocupes
por esta parte da minha existência. Contudo, se quigeres que
te lembre sempre com tenrura (estou a brincar, bem o sabes!),
escreve-me com mais vagar, descrevendo-me a tua vida e a
dos meninhos. Tudo me interessa, incluso os pormenores. E
manda-me fotografias, cada tanto. Assim seguirei também
com os olhos o desenvolvimento das crianças. E escreve-me
sobre ti, muito. Viche algumha vez o senhor Bianco39? E viche
aquele curioso modelo de africanista que umha vez me prometera
um frito de rins de rinoceronte? Quem sabe se se lembra
ainda de mim; se o vês, fala-lhe nesse frito e escreve-me
as suas respostas; divertirei-me imensamente. Sabes que nom
39 Vincenzo Bianco (nascido em 1889), operário turinês, conheceu a G. nos
anos de L’Ordine nuovo e fijo parte do grupo de «educaçom comunista», organizado
polo próprio G. em 1920 em Turim. Emigrado a Moscovo em abril
de 1923, manteve correspondência epistolar com G. e converteu-se em íntimo
amigo da família Schucht.
106
fago outra cousa: pensar no passado e repassar todas as cenas
e os episódios mais ridículos; isto ajuda-me a passar o tempo,
algumha vez até rio à vontade, sem dar por isso. Querida,
Tania anuncia-me outras cartas tuas; como as espero! Saúda
todos os teus. Quero-te muito.
Antonio
Tania é mesmo umha ótima rapariga. Por isso a figem sofrer
tanto.
•
(Carta 18)
25 de abril de 1927
Queridíssima mae,
recebim a tua carta hoje mesmo, que che agradeço muito. Estou
mui contente polas boas notícias que me dás, nomeadamente
sobre Carlo. Nom sabia quais eram as suas condiçons
no trabalho e na vida. Acho que Carlo é um ótimo rapaz, apesar
de algumha falcatruada sua do passado, e acho também
que é mais sólido nos negócios do que o eram (e talvez o sejam
ainda) tanto Nannaro quanto Mario, que eram dados a
ver ganhos fabulosos e a construir castelos no ar por qualquer
pequena cousa.
Ai de mim! todos na nossa casa (com a minha única exce-
çom) acreditaram ter umha especial aptitude para os negócios
e eu nom quereria que todos tivessem umha experiência como
aquela famosa do «galinheiro»; lembras? E Carlo, lembra? Seria
preciso lembrar-lha como umha humilhaçom perpétua
para os Gramsci que queiram dedicar-se aos negócios. Eu hei
de lembrá-la sempre, também porque aquelas galinhas, que
107
nom punham nunca, me picárom e estragárom três ou quatro
romances de Carolina Invernizio (ainda bom é!)40. A minha
vida decorre sempre igual. Leio, como, durmo e penso. Nom
podo fazer outra cousa. Tu, contudo, nom deves pensar tudo
quanto pensas e sobretudo nom deves iludir-te. Nom porque
nom esteja seguríssimo de que hei voltar a ver-te e a fazer que
conheças os meus filhos (receberás a fotografia de Delio, como
che anunciei; mas nom che entregara já Carlo umha no 1925?
Quando virá Carlo a Roma? E Chicchinu Mameli41 deu-che
um escudo de prata que lhe enviara a Mea para que figesse
umha colher de café? E umha tabaqueira de madeira especial
para ti? (Esqueço sempre perguntar-che estas cousas), mas
também porque tenho a certeza total de que serei condenado,
e quem sabe a quantos anos. Deves entender que isto nom tem
nada a ver, em absoluto, nem com a minha integridade, nem
com a minha consciência, nem com a minha inocência ou
culpabilidade. É algo que se chama Política, com a qual todas
estas belíssimas cousas nom tenhem nada a ver. Sabes o que
se fai com as crianças que mijam na cama, nom é? Ameaçase
com queimá-las com umha estopa ardendo no estremo da
forquilha. Pois bem: imagina que na Itália há umha criança
mui gorda, que ameaça continuamente com mijar na cama
desta grande mae produtora de cereais e de heróis; eu e algum
outro somos a estopa ardendo (ou o farrapo) que se ensina
para ameaçar ao impertinente e impedir que ensuje os imaculados
lençóis. Visto que as cousas som assim, nom é preciso
nem alarmar-se, nem iludir-se; é preciso apenas esperar com
grande paciência e resignaçom. Portanto, força, ainda és forte
40 Carolina Invernizio (1851-1916), conhecidíssima autora de romances por
entregas, como La sepolta viva, umha das mais famosas.
41 Francesco Mameli, conhecido da família Gramsci.
108
e jovem: havemos de ver-nos novamente. Entretanto, escreveme
e fai que me escrevam os demais: manda-me muitas notícias
de Ghilarza, de Abbasanta, de Boroneddu, de Tadasuni
e de Oristano. Tia Antioga Putzulu, vive ainda? E quem é o
podestà?42 Felle Tariggia, acho. E Nassi que fai? E os tios de
Oristano vivem ainda? Sabe tio Serafino43 que chamei Delio a
meu filho? E o hospitalinho rematárom-no? E as casas populares
em Careddu, continuárom-nas? Vês quantas cousas quero
saber? E fala-se, como penso, em unir Ghilarza a Abbasanta?
E sem que os abbasanteses se levantem em armas? E a bacia
do Tirso serve finalmente para algo? Escreve-me, escreve-me
e manda-me as fotografias, nomeadamente as das crianças.
Beijos para todos e muitos, muitos para ti.
Nino
E Grazietta por que nom me escreve nem umha linha?
•
42 Nome com reminiscências medievais que recebia o Presidente da Cámara
municipal durante a época fascista. Semelhante ao nosso «regedor»[N. do T.].
43 Serafino Delogu, primo da mae de G. Proprietário de umha farmácia em
Oristano, ajudou e cuidou a G. quando era um rapaz. Anos mais tarde, G. deu
aulas a um dos seus filhos, Delio. (ver a carta 24).
109
(Carta 19)
25 de abril de 1927
Queridíssima Tania,
recebim a tua carta do 12 e propugem-me fria e cinicamente
fazer-te raivar. Sabes que és umha grande presunçosa? Querocho
demonstrar de maneira objetiva e divirto-me já a imaginar
a tua cólera (nom te amoles, porém; isso desgostariame).
Que a carta que me enviache a Ustica estava cheia de
erros, é verdade; mas nom se te deve responsabilizar por isso.
É impossível imaginar a vida de Ustica, o ambiente de Ustica,
porque é absolutamente excecional e está fora de toda experiência
normal de convivência humana. Poderias imaginar
cousas como esta?; escuita: cheguei a Ustica no dia 7 de dezembro,
após oito dias de atraso na chegada do barco e após
quatro travessias sem sucesso. Era o quinto desterrado político
che chegava. Logo me avisárom de que me aprovisionasse
de cigarros, pois as reservas estavam para acabar-se; fum ao
tabaqueiro e pedim-lhe dez pacotes de macedónia (dezasseis
liras), pondo sobre o balcom umha nota de cinquenta liras. A
vendedora (umha mulher jovem, de aparência absolutamente
normal) surpreendeu-se pola a minha petiçom, figem que
a repetisse, tomou dez pacotes, abriu-nos, começou a contar
os cigarros um a um, perdeu a conta, recomeçou, apanhou
um fólio, fijo longas contas a lápis, interrompeu-nas, apanhou
as cinquenta liras, observou-nas por toda a parte; finalmente
perguntou-me quem era. Sabendo que era um desterrado
político, deu-me os cigarros e devolveu-me as cinquenta liras,
dizendo-me que poderia pagar-lhe depois de ter trocado
a nota. O mesmo sucesso repetiu-se noutro lugar e esta é
a explicaçom: em Ustica existe unicamente umha economia
do peso; vende-se por pesos e nunca se gastam mais de cin-
110
quenta cêntimos. A unidade económica de Ustica é o preso,
que recebe quatro liras por dia, duas das quais estám já empenhadas
ao usurário ou ao vendedor de vinho, alimentando-se
com as outras duas, comprando trezentas gramas de massa e
botando-lhe como condimento um peso de pimenta moída.
Os cigarros vendem-se um de cada vez; um macedónia custa
dezasseis cêntimos, isto é, três pesos e um cêntimo; o preso
que compra um macedónia por dia, deixa um peso em depó-
sito e dele desconta um cêntimo por dia durante cinco dias.
Para calcular o preço de cem macedónias, era pois preciso
fazer cem vezes o cálculo dos dezasseis cêntimos (três pesos
e um cêntimo) e ninguém pode negar que este é um cálculo
razoavelmente difícil e complexo. E estava a tabaqueira, isto é,
umha das comerciantes mais importantes da ilha. Pois bem:
a psicologia dominante em toda a ilha é a psicologia que teria
como base a economia do peso, a economia que apenas conhece
a soma e a resta das unidades simples, a economia sem
a tábua pitagórica. Escuita estoutra (e falo-che apenas de factos
que me acontecêrom a mim pessoalmente; e falo-che dos
factos que julgo nom ham de ser objeto de censura): fum chamado
ao escritório polo empregado encarregado da revisom
da recepçom do correio; entregárom-me umha carta, dirigida
a mim, e pedírom-me que desse explicaçons sobre o seu conteúdo.
Um amigo escrevia-me desde Milám, oferecendo-me
um aparelho radiofónico, pedindo-me os dados técnicos para
comprá-lo, polo menos com um alcance de Ustica a Roma.
A verdade é que nom entendia a pergunta que me faziam no
escritório e dixem de que se tratava; acharam que eu queria
falar com Roma e negárom-me a licença para que me enviassem
o aparelho. Mais tarde, o podestà chamou-me pola sua
conta e dixo-me que o Concelho compraria o aparelho por
própria iniciativa, e por isso nom insistim; o podestà era fa-
111
vorável a que se me concedesse a licença, porque estivera em
Palermo e vira que com o aparelho radiofónico nom é possível
comunicar-se. Poderias ter imaginado todo isto? Nom. Portanto,
na minha observaçom nom havia nem umha sombra
sequer de malícia ao teu respeito. Nom se pode pedir a alguém
que imagine cousas novas; porém, o que se pode pedir
(digo-o assim, por dizer) é exercitar a fantasia, para completar
a realidade vivida com os elementos já conhecidos. Eis onde
quero golpear-te e fazer-te raivar. Tu, como todas as mulheres
em geral, tés muita imaginaçom e pouca fantasia e além disso,
a imaginaçom em ti (como nas mulheres em geral) trabalha
numha única direçom, naquela que eu chamaria (já te vejo a
saltar)... protetora dos animais, vegetariana, de enfermeira: as
mulheres som líricas (por elevar-nos um pouco), mas nom
som dramáticas. Imaginam a vida dos demais (também dos
filhos) do exclusivo ponto de vista da dor animal, mas nom
sabem recriar com a fantasia a vida toda dos demais, no seu
conjunto, em todos os seus aspetos. (Lembra que eu constato,
nom julgo, nem ouso tirar consequências para o futuro;
descrevo aquilo que existe hoje). Eis aonde queria chegar. Tu
sabes que estou aqui, em prisom, num espaço limitado, onde
me «devem» faltar tantas cousas; pensas na casa de banho, nos
insetos, na roupa branca, etc. Se eu che escrevesse que me fai
falta um dentífrico especial, por exemplo, com certeza serias
capaz de correr de cima para abaixo por Roma, de saltares o
jantar e a cena, de apanhares febre; estou certo disso.
Escreves anunciando-me umha carta de Giulia; mais tarde
voltas escrever-me, anunciando-me outra; depois recebo
umha carta tua (e aprecio muito as tuas cartas), mas nom recibo
as cartas de Giulia e ainda nom as recebim. Pois bem, nom
podes fazer-te bem umha ideia da minha existência aqui na
cadeia. Nom imaginas como eu, recebendo o anúncio, espero
112
cada dia e cada dia tenho umha desilusom, e isso repercute
em todos os minutos de todas as horas de todas as jornadas;
como eu leio e a cada momento abandono a leitura e me ponho
a passear de cima para abaixo e penso e volto pensar e
cismo e digo sem parar: Ai, esta Tania, esta Tania! Mas nom
deves enfadar-te demasiado, sabe-lo, e também nom deves
sentir demasiado desgosto (um pouquinho, sim, contudo; assim
envias aginha as cartas, sem anunciá-las antes e sem fazerme
pensar sempre que se perdêrom). Viche quantas voltas dei
para dizer cousa tam simples? E quantos contos che contei?
Som ruim, mesmo ruim. Mas como nom percebes que eu
muitas vezes quero brincar e me respondes tam séria? Sabes
quanto me rim quando me respondeche, totalmente séria, a
propósito das fotografias que levei à cela? O mesmo quando
confundiche os dous santo antónios; também estava a brincar.
Umha outra cousa que nom entendeche. Tu, precisamente
tu (como pudeche esquecê-lo?) me escreveras que nom devia
pensar (visto que nom recebia as tuas cartas) que me quigesses
menos ou que me tivesses esquecido. E eu respondim que se
tivesse pensado isso, nom che teria escrito mais, como figem
algumha vez no passado, nom já porque eu tenha sempre «necessidade
de ser amado, cuidado, etc. etc.» (ó, psicologia de...
sociedade protetora dos animais!), mas sim porque odeio todo
quanto é convencional e que cheira às rotinas dos escritórios.
Eu nom som um angustiado que deva ser consolado; nunca
me converterei nisso. Mesmo antes de que me enviassem para
a cadeia, conhecia o isolamento e sabia encontrá-lo mesmo no
meio das multitudes. Nom é isso, nom é o que pensache. Na
verdade, é justamente o contrário. Umha carta tua enche-me
bastantes jornadas. Se pudesses ver-me quando recebo umha
carta, certamente havias de escrever umha por dia (mas isso
seria mau, aliás). Mas já chega de todo isto.
113
Entretanto, nesta semana nom podo escrever para Giulia.
Sabes? O teu pacote chegou, e vim as cousas tam bonitas que
me enviache: porém, só me dérom o chocolate. Nom se exclui,
contudo, que também me entreguem o resto: é preciso fazer
umha petiçom, que já está em andamento. O chocolate é ótimo:
como-o em pedazinhos, por causa dos dentes (eis umha
cousa que che interessa: dérom-me o chocolate, mas nom o
papel de cores do envoltório, precisamente porque se pode
utilizar para tingir: contudo, a bola tem umha cor natural de
papelom, mui útil agora que está completamente enxuita).
O endereço de minha mae é este: Peppina Gramsci, Ghilarza
(Cagliari); escrevo-lhe hoje mesmo anunciando-lhe a
fotografia. Receberás (polo que me asseguram) um pacote de
uva de Pantelleria para Delio e Giuliano; verás que uva maravilhosa;
nada a ver com a uva grega! Deixo-che que comas
umhas poucas, para que o comproves. Giulia estará mui contenta
e Delio quererá comê-la todo depressa. Asseguro-che
que esta uva me surpreendeu polo arrecendo, o sabor e a carnosidade
da sua polpa seca. Querida Tania, nom te azougues
demasiado; quero-te muito, muito, e desesperaria-me bastante
magoar-te de maneira demasiado intensa. Um abraço
Antonio
•
(Carta 20)
23 de maio de 1927
Queridíssima Tania,
recebim na semana passada um postal teu e mais umha carta,
além da carta de Giulia. Quero tranquilizar-te no que respeita
à minha saúde: estou bastante bem e falo a sério. De facto,
nesta última semana como com umha responsabilidade que
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me surpreende a mim mesmo: conseguim que me dessem
quase que toda a comida como eu gosto e creio que até engordei.
Aliás, desde há algum tempo dedico um pouco de tempo,
tanto de manhá como de tarde, à ginástica; ginástica de quarto,
que nom creio que seja mui racional, mas que me presta
muitíssimo igualmente ou assim me parece. Fago assim: procuro
fazer movimentos que impulsem todas as articulaçons e
todos os músculos, em ordem e procurando aumentar cada
semana em algumha unidade o número de movimentos; que
isto é útil demonstra-se, para mim, em que nos primeiros dias
me sentia todo dorido e só podia fazer certos movimentos
pouquíssimas vezes, enquanto agora já conseguim triplicar o
número de movimentos sem experimentar nengumha moléstia.
Acho que esta inovaçom me prestou também psicologicamente,
distraindo-me principalmente das leituras demasiado
aborrecidas e feitas apenas para matar o tempo. Também
nom deves crer que estude a mais. Um autêntico e adequado
estudo acho que é impossível para mim, por muitas razons,
nom apenas psicológicas, mas também técnicas; é mui difícil
abandonar-me completamente a um tema ou a umha matéria
e aprofundar somente nela, precisamente como se fai quando
se estuda de verdade, para captar todas as relaçons possíveis
e uni-las harmonicamente. Se calhar começa a acontecer-me
algo nesse sentido no que di respeito do estudo das línguas,
que procuro fazer de maneira sistemática, quer dizer, sem
descuidar nengum elemento gramatical, como nom figera
até agora, já que me contentava com saber o suficiente para
falar, e nomeadamente para ler. Por isso nom che escrevim
até agora que me enviasses nengum dicionário: o dicionário
alemám de Kohler, que me enviache a Ustica, perdêrom-no
os meus amigos de lá; escreverei-che que me envies o outro
dicionário, o Langescheid, quando tiver estudado toda a gra-
115
mática; escreverei entom que me envies também os Gespräche
de Goethe com Eckermann, para fazer análises da sua sintaxe
e estilo, e nom apenas para ler; neste momento leio os contos
dos irmaos Grimm, que som mui básicos. Estou mesmo
decidido a estudar as línguas de que me ocupo de maneira
predominante; quero retomar de maneira sistemática, após o
alemám e o russo, o inglês, o espanhol e o português, que estudara
pouco e mal em anos passados; para além do romeno,
que estudara na universidade apenas na sua parte neolatina
e que agora penso que podo estudar completamente, quer
dizer, também com a parte eslava do seu dicionário (que de
resto é mais de 50% do vocabulário romeno). Como vês, todo
isto demonstra que estou completamente tranquilo, também
no aspeto psicológico; de facto, nom sofro mais dos nervos,
nem de acessos de cólera surda, como nos primeiros tempos;
aclimatei-me e o tempo passa bastante depressa; penso em semanas,
nom em dias, e a segunda-feira é o ponto de referência,
porque escrevo e fago a barba, operaçons eminentemente
rotineiras.
Quero fazer-che um catálogo da minha biblioteca permanente,
isto é, dos livros da minha propriedade, que manejo
continuamente e que tento estudar. Vejamos. O Corso di
Scienza delle Finanze da Einaudi, eis um sólido livro para digerir
de forma sistemática. Sobre finanças tenho tambén Gli
ordinamenti finanziari italiani, coletánea de palestras pronunciadas
na Universidade de Roma por técnicos da administra-
çom estatal; ótimo livro e de grande interesse. Umha Storia
dell’Inflazione, escrita por Lewinsohn, mui interessante, ainda
que de tipo jornalístico. Um livro sobre a Stabilizzazione monetaria
nel Belgio escrito polo ministro Frank. De economia
nom tenho nengum texto: tinha em Ustica aquele tam bom
de Marshall, se bem que os amigos ficárom com ele. Porém,
116
tenho as «Prospettive economiche» de Mortara para 1927; a
«Inchiesta Agraria» de Stefano Jacini; o livro de Ford Oggi e
domani, que me diverte bastante, porque Ford, embora seja
um grande industrial, parece-me bastante cómico como teó-
rico; o livro de Prato sobre a estrutura económica do Piemonte
e de Turim e um fascículo dos «Annali di Economia» com
umha pesquisa mui diligente sobre a estrutura económica da
regiom de Vercelli (zona arroceira italiana) e umha série de
conferências sobre a situaçom económica inglesa (há também
umha conferência de Loria). De história tenho pouquíssimo,
e o mesmo no caso da literatura: um livro de Gioachino Volpe
sobre os últimos cinquenta anos de história italiana, embora
atual, de caráter principalmente polémico, La storia della lett.
italiana e os Saggi critici de De Sanctis. Aqueles que tinha em
Ustica tivem que deixar-lhos aos amigos de lá, que se encontravam
também em dificuldades.
Quigem-che escrever isto tudo porque acho que é a melhor
maneira de que tanto tu quanto Giulia vos fagades umha
ideia, polo menos aproximada, da minha vida e do curso ordinário
dos meus pensamentos. De resto, nom devedes pensar
que esteja completamente só e isolado; todos os dias, de
umha maneira ou de outra, há algum movimento. De manhá
tenho o passeio; quando me toca umha boa posiçom no pátio
pequeno, observo os rostos dos que vam e dos que venhem
ocupar os outros pátios pequenos. Depois vendem os jornais
permitidos a todos os presos. De volta para a cela, trazemme
os jornais políticos que me permitem ler; depois fago a
compra, mais tarde trazem a compra feita o dia anterior, a
seguir trazem o almorço, etc., etc. Em resumo, vem-se continuamente
novos rostos, cada um dos quais esconde umha
personalidade que adivinhar. De resto, poderia, renunciando
à leitura dos jornais políticos, estar na companhia de outros
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presos durante quatro ou cinco horas por dia. Pensei-no um
pouco, mas logo me decidim a estar só, mantendo a leitura
dos jornais; umha companhia ocasional divertiria-me durante
alguns dias, se calhar durante umha semana, mas depois, com
toda a probabilidade, nom conseguiria substituir a leitura dos
jornais. O que achades? Ou é que a companhia, em si e por si,
vos parece um elemento psicológico que deva apreciar mais?
Tania, como doutora tu deves dar-me um conselho, mesmo
de caráter técnico, porque é possível que eu nom seja capaz de
julgar com a objetividade se calhar necessária.
Esta é, pois, a estrutura geral da minha vida e dos meus
pensamentos. Nom quero falar dos meus pensamentos dirigidos
a vós todos e às crianças: esta parte devedes imaginá-la, e
penso que a sentides.
Querida Tania, no teu postal falas-me outra vez da tua
chegada a Milám e da possibilidade de que nos vejamos na
conversa. Será verdade desta vez? Sabes que já vam mais de
seis messes sem ver nengum familiar? Nesta ocasiom esperote
a sério. Abraços.
Antonio